Desde Ossada, espetáculo de 2018, passando pelo experimento audiovisual A Árvore, de 2020, em que dirigiu Alessandra Negrini, Ester Laccava tem se embrenhado por caminhos densos e sensoriais em suas criações e direções teatrais. Em CurtumeDias Secos Inundados de Acácia, sua nova produção como atriz e encenadora (de 22 de novembro a 15 de dezembro de 2023, no Espaço Cênico, do Sesc Pompeia), ela segue guiando o olhar do espectador por este ângulo.

Absorvida pelo realismo fantástico, também tinge a nova peça com as cores desta corrente artística. São as camadas profundas da linguagem teatral que arrebatam a criadora. “Os arquétipos onde nós nos reconhecemos coletivamente”, elabora. Em Curtume, Ester escolheu, enquanto encenadora, a memória como conceito. Num sonho as imagens podem vir desfocadas, alongadas… distorcidas. “Agora mais velha percebo que quando a criação está no meu quarto, no meu colo, mais do que guiá-los para minha experiência pessoal, ou minha opinião sobre o mundo, sobre o ser humano, prefiro que o expectador ache um espaço muito maior, mais coletivo, onde o julgamento abaixe, e a visão aumente. Mais velha, uso óculos e tenho dificuldade para focar um objeto. Quando foco, todo o entorno se desfoca, é um movimento parecido com a criação.”

De forma metafórica, a atriz e diretora aborda nas entrelinhas a condição primária do homem, o trabalho que arranca o couro do ser humano, segundo ela, que não tem outra opção a não ser ficar sem pele, desprotegido em estado de dor, de raiva. “Pessoas que já nascem sabendo que serão abatidas e viverão em condições sub-humanas, exploradas.” Ester gosta de ir para o palco curada, depois de ter abraçado suas feridas, como diz.  “Levo para o teatro minhas deformações e não hesito em mostrá-las porque vejo beleza nisso.” Fala de sua capacidade de se acalmar pelo silêncio para poder escutar o seu mar revolto, boiar e criar. “Muito da minha criatividade vem dessa menina que boia e observa.”

SINOPSE

Curtume é um texto poético, conta a história de uma mulher desde criança até a idade adulta. Ester Laccava dá vida a uma idosa que recebe em sua casa um policial que investiga a morte do dono de um curtume. A busca pelo esclarecimento das razões da morte do homem, encontrado sem pele, nos leva à narração da história de vida de uma mulher que aprende a caminhar sobre cacos de vidro. Inspirada pelas tranças da personagem (“sinuosas como um rio, como um bote armado de urutu”), Laccava criou uma instalação no universo do realismo fantástico. “Do painel de treliça até a porta de entrada do Espaço Cênico do Sesc Pompeia são 17 metros de encontros de um tecido tingido, trabalhado, simulando um cabelo e formando uma enorme trança. Nesse ambiente entram objetos criados pela artista plástica Carla Venusa, as projeções de Mirella Brandi e a sonorização, todos os elementos organizados pela arquiteta Giulia Lacava, assistente de direção.

Ao produtor Emerson Mostacco, parceiro de anos, Ester confiou a tarefa da criação dos figurinos. “Um cara que amo, tenho identificação, ele é aquele chão de fábrica como eu. Vou do chão de fábrica até o CEO, passo por tudo, aprendi a fazer teatro assim. Eu escolho o que quero falar, traduzo por vezes, negocio os direitos, vendo e produzo o projeto, pauto, atuo”, diz ela, que produz teatro há 21 anos e fez luz de um espetáculo que dirigiu quando estava em Portugal, durante a pandemia. Ao longo dos últimos 13 anos, Ester tem encontrado plena satisfação na parceria de trabalho com Mirella Brandi (“conto com ela para fazer meus vôos rasantes”), responsável pela instalação de luz do espetáculo. Com poucos objetos redimensionados no palco, Laccava apoia sua criação em um cenário minimalista. Mesclando músicas que a inspiram, a diretora conta com temas autorias de Mueptemo.

ILUMINAÇÃO

O desenho de luz de Mirella Brandi foge ao padrão da iluminação mais convencional realizada em artes cênicas. Para atingir o efeito desejado, a artista bebe na fonte do trabalho de luz utilizado no universo das instalações imersivas em artes visuais. O ambiente criado resulta da combinação de uso de equipamentos convencionais de luz de teatro – utilizados de forma diferente – junto com imagens de projeção.

“Não se percebe o que é projeção e o que é luz. A ideia é transportar o público para um mundo imaginário. O resultado é uma dramaturgia de luz que ajuda a contar a história da peça e, ao mesmo tempo, cria arquiteturas imateriais que se formam pelo espaço, transcendem o palco para atingir a plateia. O público fica imerso nesse ambiente de luz e imagem, se sente dentro da história, como protagonista, incluído na narrativa que está sendo contada  e não na plateia apenas observando.

Palavras de Ester Lacava

Mais do que nunca, nesses últimos dois anos, fui submetida a um questionamento profundo sobre fazer arte/ teatro nesse momento de urgências complexas que acometem a humanidade e o planeta. Questões de guerra, da fome, da extinção, do racismo estrutural, das questões identitárias. Qual a relevância do meu trabalho agora? Para quê? O que tenho de tão importante para mostrar? Parece que fomos achatados, atirados ao chão. Rastejamos por alguma trilha, torcendo para que essa nos leve ao destino “fazendo sentido”. Ao receber desse jovem autor o texto “Curtume – Dias inundados de acácia”, avistei um destino grandioso. O texto épico do Denizart é uma identificação imediata, poética e trágica da vida desigual que vivemos no nosso país. Salta nas nossas entranhas, projeta com rigor o abismo dos excluídos, que quando testados, mostram-se heróis com musculatura e conhecedores dessa causa vergonhosa: a sobrevivência.

Ao sonhar com esse projeto, esse texto na minha imaginação artística, escuto o eco dos deuses preenchendo um espaço cênico capaz de encantar esse marco histórico, uma humanidade que necessita urgentemente de mudança. Como as grandes obras, Curtume traz a universalidade que carrega e inunda nossa existência poética versus uma realidade injusta. Como criadora, atriz e diretora me vejo capaz, envolvida, raptada para realizar essa montagem e contar a história dessa mulher que trabalhou no curtume para criar seus filhos. As Hécubas encarnadas num Brasil em ruínas, lutando para salvar suas crias, honrando a vida, até quando ela se mostra terrível. O teatro nessa altura da minha vida, ele não me cura, eu me cuido, fico atenta, de prontidão, venho curada, inteira, para servi-lo. Me curo no dia a dia, vivendo intensamente para me comunicar com os outros, e assim, no palco, ter todas as referências, experiências capazes de DESCONCERTAR artisticamente os lugares mais rígidos da nossa sociedade. Eu entendo agora que minha entrega de 40 anos servindo no palco, é para COMUNICAR. “Hei, você sentado aí, já pensou desse outro jeito? Hei você aí sentado, quer ir um pouco mais longe, mais fundo? Quer repensar esse tema?” Para realizar essa tarefa, conto com vocês e uma equipe de profissionais muito leais ao risco que corremos de quando se entrega TUDO para o teatro.

DRAMATURGIA

A dramaturgia é concebida para uma atriz, de modo que os sucessivos encontros que acontecem no decorrer da peça, sempre são enunciados pela mesma voz. Os filhos, o primeiro patrão, o dono do curtume, o investigador, são personagens que temos acesso apenas pela narrativa da mulher, procedimento comum nas narrativas orais, que ao ser levado ao teatro confere um efeito de estranhamento épico que nos ajuda a acompanhar e nos engajar naquela trajetória de vida.  A dramaturgia da peça é constituída por meio de três movimentos articulados com deslocamentos temporais, que dão conta da trajetória de vida de uma mulher. No primeiro movimento, “Desenhar em pedra e metal”, vemos uma criança desenhando em um latão de metal, em uma espécie de rito iniciático da tragédia que ela irá empreender. No segundo movimento, “Aprender a andar sobre cacos de vidro”, já não se trata mais de uma criança, mas de uma mulher, com seis filhos. Acompanhamos os embates dessa mulher em empregos precários e sua angústia diante da impossibilidade de constituição de uma vida digna.

Neste terceiro movimento, vemos a mulher já idosa, narrando histórias para a sua neta enquanto a ensina a costurar uma sandália de couro, espécie de costura da própria história da velha e de sua neta. É o momento no qual a velha recebe a visita de um investigador que procura saber informações sobre a morte do dono do Curtume da cidade, que foi encontrado em um dos tachos do Curtume, sem pele. Essas três cenas de vida da personagem são estruturadas de modo a conferir um efeito trágico na constituição de uma vingança arquetípica daquela mulher, rompendo com uma estrutura patriarcal de opressão. É a estrutura trágica, porém, a partir de gente comum, pessoas simples, que encarnam movimentos existenciais que se propõe a dignificar a vida humana. O enlace temporal com a neta aponta para o rompimento da cadeia de acontecimentos opressores que se perpetuam a séculos.

SERVIÇO

Curtume – Dias secos inundados de acácia

Temporada: de 22 de novembro a 15 de dezembro de 2023.

Terça a sexta, às 20h30.

Espaço Cênico do Sesc Pompeia. Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93.

Capacidade: 61 lugares. Duração: 60 min. Ingressos: R$ 12,00 (credencial plena/trabalhador no comércio e serviços matriculados no Sesc e dependentes),

R$ 20,00 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino, ID Jovem, PCD e seus Acompanhantes) e R$ 40,00 (inteira).

Classificação indicativa: Não recomendado para menores de 14 anos. Não tem estacionamento. sescsp.org.br/pompeia