André, 10 anos, sabia que a avó tinha nascido na Romênia e vivido um tempo em Israel antes de chegar ao Brasil um pouco mais nova que ele, com 9, em 1953 – e não muito mais do que isso. No livro que ele tem em mãos e mostra orgulhoso, e que preenche algumas lacunas da história familiar, ele lê a dedicatória: “Você é uma das razões para esse livro existir”.

Foi por causa de André e dos outros cinco netos (de seus dois filhos) que Eveline Alperowitch decidiu abrir os arquivos de seu pai, guardados desde 1989, quando ele morreu, e remexer em suas lembranças. O resultado pôde ser lido pela família e alguns poucos amigos em Drora, escrito com a ajuda da jornalista Ana Tanis e publicado com uma tiragem de 100 exemplares.

“Eu achei bem impressionante que um parente meu tenha participado de uma guerra tão grande. Fiquei curioso para saber mais sobre a Primeira Guerra, perguntei para os meus pais, pesquisei na internet, procurei livros na biblioteca. Vai ser muito legal quando eu tiver uma aula inteira sobre isso. No final, vou poder falar para a professora que meu bisavô estava lá”, conta André, o leitor mais entusiasmado do livro da avó, que mora nos Estados Unidos.

“Era isso que eu queria: uma possibilidade de continuidade, de conhecimento, de mostrar que teve uma história antes deles”, diz Eveline. Uma história que ela mesma foi conhecendo mais profundamente à medida que mergulhava em documentos, cartas, diários e que transformou o livro também num tributo a seu pai, um sobrevivente de duas guerras e uma prisão que foi se fechando ao longo da vida e com quem ela pouco conversou. “Conversa foi uma coisa que nunca existiu com meu pai, e se a gente tivesse podido conversar minha vida teria sido outra, e nem com os meus filhos”, conta.

A publicação dessa obra trouxe, assim, outros ganhos para esta família – para além do registro de fatos e datas, que foi a ideia inicial. “Aprendi a conhecer a minha mãe. Todas as características de personalidade dela são consequências do período que ela narrou no livro. E acabei me conhecendo melhor através dos olhos dela e de suas memórias – algo que não aconteceria se não fosse por um livro como esse. Mais do que os fatos, o que ficou foram essas explicações de quem somos nós”, avalia Fernando Alperowitch, 44 anos, filho mais novo de Eveline e pai de André.

“Um pai que eu não tive, uma filha que meu pai não teve, filhos que eu não tive, netos… todos se conectaram por causa desse livro. Nós nos apresentamos, quatro gerações de uma família que está mais próxima hoje”, diz Eveline, psicanalista, para quem o processo de feitura da obra não foi fácil. “Se não fosse pela Ana e por sua presença eu não iria me aventurar sozinha. Eu me perguntava: por que não pudemos ver isso antes, em vida? Descobrir em documentos o que ele sofreu… Não é fácil, mas é bom. Está ok agora, mais confortável para existir.”

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Drora foi produzido e publicado pela Livros de Família, editora criada pelo jornalista André Viana em 2011 e que lançou cerca de 30 títulos sobre personagens e famílias diversas – resultado de horas e horas de entrevista, edição de texto, pesquisa histórica e de imagem, montagem de árvore genealógica, etc.

Tudo começou quando ele foi indicado por um amigo para uma pessoa que queria registrar as histórias que seu pai, então com 90 anos, contava nos almoços de domingo. Foi um mergulho de quase um ano e meio na família de Zoé Silveira D’Ávila. “Gostei da brincadeira. Achei que era um jeito de juntar as duas coisas que eu fazia: o jornalismo e a literatura (ele é autor de O Doente, publicado pela Cosac Naify). E tudo foi acontecendo no boca a boca”, contra André Viana.

O editor explica que a primeira conversa fica sempre na superfície da história. “À medida que vamos mergulhando nos assuntos e vou percebendo onde estão os nós, e aí entra a experiência de ouvinte do jornalista, toco em temas e a poeira começa a ser remexida. As pessoas se veem obrigadas, e até aliviadas, de poder falar sobre aquilo.”

Inevitavelmente tem choro nas conversas, diz. E muitos dos projetos resultam não só no livro, mas num novo começo para aquela família. Como na história de Eveline e de outras que tiveram sua trajetória registrada.

Há outras editoras especializadas nesse tipo de publicação, como a Artesão de Memórias, de Curitiba, e a Memorabilia, do Rio. É um negócio economicamente viável e que passa ao largo da atual crise do mercado editorial tradicional. Os valores variam. Os projetos mais simples custam, na Livros de Família, entre R$ 30 mil e R$ 40 mil, fora os custos de impressão (que depende da tiragem). Os mais trabalhosos podem chegar a R$ 100 mil, também sem a gráfica, que é mais ou menos o preço de um livro empresarial, explica André. Biografias de empresas e empresários também estão na mira do editor, que se prepara para experimentar o modelo de venda com um de seus títulos: O Diabo na Casa do Terço, com histórias que a jornalista Cássia Miguel Baldauf ouvia do pai, Jorge Miguel, em sua venda, na cidade mineira de Guaranésia.

E por que vender? “Vivemos muito globalizados, estimulados demais por problemas externos, informados demais. Um olhar e um registro de vivências, valorizando a simplicidade, a densidade próxima de todo dia pode sim ser literatura. O editor André Viana enxergou isso e me convenceu de que o livro poderia interessar a quem não conheceu meu pai, nossa venda, as personagens, a cidade”, explica Cássia.

Investigar as raízes, conhecer o passado para entender o presente. Perpetuar as histórias. Lidar com a angústia de que essas histórias possam ir embora com as pessoas. Não esquecer. Deixar um legado para as próximas gerações. É possível fazer isso tudo profissionalmente ou de forma caseira.

Foram lançados recentemente, pela Sextante, dois livros da holandesa Elma Van Vliet: Mãe, Me Conta a Sua História? e Vó, Me Conta a Sua História? Livro é modo de dizer. Eles são, na verdade, cadernos de perguntas que propõem um diálogo mais íntimo entre as famílias.

Quando sua mãe ficou muito doente, ela percebeu que não sabia muita coisa sobre ela. “São momentos como esse, quando recebemos uma má notícia ou temos um bebê, que nos damos conta do que realmente importa”, diz a autora ao jornal O Estado de S. Paulo. Ela então criou essas perguntas, sua mãe respondeu e segue firme e forte, e uma nova relação se estabeleceu. “Com o livro, começamos uma conversa totalmente diferente. Eu me toquei de que ela também tinha sido uma criança, com suas esperanças e sonhos. Há coisas que não sabemos como nem quando perguntar, e uma conversa dessa não se encaixa no nosso dia a dia. Além disso, nesse mundo e tempo em que vivemos esquecemos como passar adiante as histórias de nossa família. E é tão importante que a gente as tenha”, comenta.

Um amigo sugeriu que ela publicasse suas perguntas em livro. E então uma menina escreveu para ela dizendo que era tudo muito legal, mas que sua mãe não tinha sido uma boa mãe – e que o pai era seu herói. Assim começou sua série que conta hoje com 40 livros e jogos para famílias e 4 milhões de unidades vendidas. Para Elma, a demanda e o sucesso de obras como essas vêm da nossa necessidade de nos conectarmos com as pessoas que são mais importantes em nossa vida.

Memória e ficção. Uma das principais escritoras brasileiras (embora filha de italianos nascida na Eritreia), Marina Colasanti é adepta dos diários (“eventuários”, em suas palavras), já escreveu um livro de memórias, Minha Guerra Alheia, sobre seus primeiros anos e sobre como é ser criança na guerra, e trabalha num segundo volume centrado em Gabriella Besanzoni Lage, Henrique Lage e na casa que ele construiu para ela e onde Marina morou por vários anos, o Parque Lage (que aparece ainda em Eu Sozinha).


Para ela, escrita é memória. “Nem sempre de fatos, mas sempre de vivências, cheiros, olhares, sentimentos, sons que acumulamos ao longo da vida e aos quais fazemos recurso na hora de escrever.”

“O registro da memória é importantíssimo. Para a construção da história. Para que o passado, sobre o qual se apoia o presente, não desapareça. Para melhor entender o presente. Para mais amplo conhecimento do percurso de uma família, de uma sociedade, de uma cultura.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias