Uma coisa é o desejo de um mundo saudável, outra coisa é a realidade. Quando ambos coincidem, ótimo. Quando se chocam, a inteligência humana opera para nos adaptarmos a novas situações, ainda que desagradáveis, porque sempre fala mais alto o impulso de sobrevivência. Nos dias atuais, é falácia acharmos que a Covid-19 acabou. O que ocorre, realmente, com base na experiência epidemiológica da humanidade e na ciência, é que o novo coronavírus, responsável pela pandemia da Covid-19, veio para ficar. O mundo parece que está começando a entender esse infeliz fenômeno. E parece, também, que está começando a perceber que a melhor forma de seguir vivendo é se vacinar e aceitar — mantendo rigorosos cuidados sanitários — a convivência com o indesejável microrganismo. Isso não é abatida resignação, é chamamento de vida. “A gente tem de aprender a conviver mesmo com o vírus, a se cuidar, lavar as mãos constantemente, usar máscara e, principalmente, colocar muita fé na vacina”, diz a duplamente vacinada dona de casa Antonietta Neglia.

CONSCIÊNCIA Mesmo depois de imunizado, Pedro Pastorelli segue com os cuidados sanitários: nova rotina (Crédito:Anna Carolina Negri)

Nunca a comunidade científica foi tão rápida e eficiente na produção de vacinas — só para se ter uma ideia, o vírus da aids mostrou o seu rosto há quatro décadas e até hoje não há imunizante. Tal presteza dos pesquisadores em relação à Covid não significa, no entanto, que o vírus foi derrotado. E por que temos de aprender a repartir o mundo com ele? Primeiro, porque os vírus estão no planeta antes mesmo do surgimento da espécie humana, e isso os faz incrivelmente resistentes. Em segundo lugar, porque, ao se replicarem, sofrem falhas genéticas que resultam em variantes. “Eu e todo mundo teremos de aprender a viver com novos cuidados para sempre. Eu me vacinei e tive Covid, de forma leve, isso é normal porque o vírus sofre mutações. Sou completamente a favor da vacina”, diz o empresário Pedro Aparecido Pastorelli. Na verdade, o fato de Pastorelli ter contraído a doença de forma leve, mesmo tendo se imunizado, não quer dizer que a vacina não funcione. O que aconteceu com ele só reforça o que já foi dito: o vírus e suas variantes permanecem entre nós. Algo bastante similar à gripe. Tanto é assim que autoridades sanitárias do governo do estado de São Paulo, acertadamente, já agendaram para janeiro de 2022 o início do novo ciclo vacinal anti-Covid. Não se trata de dose de reforço, mas de profilaxia. “Nós temos a questão relacionada à imunização anual, assim como fazemos com a gripe”, disse o secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn.

INGLATERRA As máscaras, que foram jogadas para o ar, terão de voltar para os rostos (Crédito:Natalie Thomas)

Eterno vaivém

Denomina-se Delta e teve origem na Índia, por exemplo, a mais recente variante do vírus da Covid — e ela está a nos mostrar que a doença, pelo menos até agora, pode ser reprimida (ter seus efeitos minimizados), mas não derrotada. A Delta possui altíssimo poder de transmissão. No Brasil, até a quarta-feira 21, contavam-se cento e vinte infectados — e os dados podem não representar a totalidade de casos, já que muitos brasileiros foram contaminados sem que o vírus que os apanhou tenha sido submetido a sequenciamento genético. Nos EUA, Inglaterra e França, onde máscaras foram lançadas ao ar em um gesto de libertação, o acessório protetor está voltando aos rostos. Entre os americanos, 83% dos novos registros de Covid se devem à variante Delta, e, na Inglaterra, esse índice já chega a 99,5%. “As pessoas não terão de usar máscaras o tempo inteiro e para o resto da vida, mas é recomendável que sempre as utilizem, daqui para frente, em aglomerações” diz o infectologista e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologista Renato Grinbaum.

É preciso valer-se, então, das ferramentas que existem para a convivência com o inimigo invisível não ser mortal, uma vez que ele, pelo jeito, ficará num eterno vaivém — e nós precisamos tocar o barco da vida para a frente. Os protocolos sanitários individuais são o presente e serão o futuro — e, entre eles, está a proteção de boca e nariz e a vacinação que promete ser anual. Se há um vírus que pode ser fatal e as suas novas cepas são inúmeras e renováveis, nada mais certo e humano que a adaptação a novos hábitos: é melhor levar com bom humor e paciência, por exemplo, o fato de se estar com máscara numa pista de dança, do que não poder sair para dançar.

A nova receita do capitão charlatão
O remédio da vez, na boca de Jair Bolsonaro, chama-se proxalutamida

Finalmente Jair Bolsonaro disse uma coisa certa. Declarou que não pode abrir a boca para falar de remédios contra a Covid que já o consideram um criminoso. Bolsonaro acertou porque, de fato, ele comete atos criminosos, um atrás do outro, todas as vezes que se refere a medicamentos. Bolsonaro não é médico, exala charlatanismo e coloca irresponsavelmente em periclitação a vida de pessoas ao “prescrever”, em redes sociais ou entrevistas, soluções mentirosas para o tratamento do coronavírus. O capitão não fica entre a ignorância e a má-fé; o capitão tem ambas.

O remédio da vez, em sua boca, chama-se proxalutamida. Trata-se de um fármaco produzido para tratar cânceres de próstata e mama. Age como antiandrógeno (inibidor do hormônio masculino) e ainda está em fase de desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintor. Uma coisa é o fato de ele ainda estar sendo estudado nos EUA, Alemanha e México, entre demais países; coisa bem diferente é considerá-lo eficaz contra a Covid, como já quer o presidente. Também no Brasil a Anvisa autorizou, na semana passada, uma pesquisa para avaliá-lo. Perigo à vista: os estudos da Anvisa não são independentes o quanto deveriam ser e podem se moldar aos desejos do Planalto. Vale frisar que, até agora, a proxalutamida não recebeu aval para tratar nenhuma doença em seres humanos.

Divulgação

Eis o que o professor-doutor em infectologia Jair Bolsonaro, responsável maior pela morte de mais de meio milhão de brasileiros devido a sua política negacionista, já “receitou”, desrespeitando a comunidade científica: cloroquina, hidroxicloroquina, nitazoxanida, ivermectina, zinco, corticoide, ozônio e dióxido de cloro. Detalhe importante: essas medicações funcionam bem, são eficazes e seguras para as doenças às quais se destinam, não para Covid-19. Na semana passada, o YouTube retirou quinze vídeos nos quais Bolsonaro defendia o kit Covid. Diz o presidente: “temos de buscar alternativas e eu não errei nenhuma, com o devido respeito”. Imaginem se fosse sem “o devido respeito”.