O número 1.919 da Avenida Paulista traz o testemunho mais antigo do que já foi morar na mais conhecida via da cidade de São Paulo. Nesse endereço foi erguido o Palacete Franco de Mello há 114 anos, antigo lar de um dos então maiores cafeicultores da região e protagonista de uma disputa judicial entre Estado e herdeiros durante mais de 20 anos.

Desde junho, o casarão está em posse da gestão João Doria (PSDB), que desistiu de torná-lo sede principal do Museu da Diversidade, o que havia sido anunciado pelo então governador Geraldo Alckmin (PSDB) em 2014. A proposta estadual hoje é “fazer um processo público de seleção”, cujo modelo ainda está em avaliação, segundo nota. O custo da desapropriação não é divulgado, mas o pagamento do precatório pelo governo aos herdeiros superou R$ 200 milhões no ano passado.

Em agosto, o secretário de Cultura e Economia Criativa, Sérgio Sá Leitão, defendeu que o casarão seja concedido à iniciativa privada por 30 anos durante uma reunião do Conselho Gestor do Programa de Parcerias Público-Privadas. Na ocasião, ele disse que o “investimento em novas construções e restauro” custaria R$ 36 milhões. A proposta ainda não foi divulgada para a imprensa ou o público em geral, mas prevê a construção de “equipamentos adjacentes” no terreno.

Em nota, o Estado informou também ter contratado a “manutenção emergencial e o serviço de segurança e vigilância, para proteção”, sem especificar os tipos de reparo feitos no casarão, que não passa por restauro há décadas. O comunicado diz, ainda, que o novo espaço aberto no local terá “caráter cultural, com possibilidade de uso comercial concomitante”, de modo a “promover a ampliação da oferta cultural da cidade.”

Além disso, o governo estadual começará a promover, ainda neste mês, sessões de projeção mapeada na fachada do casarão, sempre das 18 horas até a meia-noite. A intervenção deve permanecer por seis meses, enquanto outras atividades culturais são planejadas para o espaço.

Crítica

Em 2014, Alckmin anunciou durante a Parada do Orgulho LGBT que o palacete seria transformado no Museu da Diversidade, que havia sido aberto dois anos antes na estação República, do Metrô. “A ocupação do casarão possibilitará a ampliação de ações culturais relacionadas à preservação, ao estudo e à difusão da memória da população LGBT paulista e brasileira”, descreveu release da época.

O texto assinalava que o museu também iria abordar a memória do casarão e do histórico de ocupação da Paulista. Já um anúncio publicado no Diário Oficial em 2015 apontava que o espaço seria inaugurado no ano seguinte, com biblioteca, auditório, área de lazer, café, restaurante e loja de souvenir.

A Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOGLBT) divulgou na segunda-feira, 2, uma nota contra a desistência do projeto, na qual diz que a Secretaria de Cultura “sequer abriu um canal de diálogo com comunidade que lutou para que esse espaço existisse.”

“A Paulista é um local icônico da população, de grandes manifestações, a Parada é lá. A gente entende que o melhor lugar para o museu seria na Avenida Paulista”, argumenta Renato Viterbo, vice-presidente da entidade. “Não é só a questão de ser na Paulista, mas porque já foi gasto dinheiro (público) para fazer o projeto (de restauro).”

O casarão tem cerca de 600 metros quadrados de área construída em um terreno de 2,7 mil metros quadrados. Em estilo eclético, é tombado nas esferas estadual e municipal, o que motivou a ação dos proprietários contra o Estado, que alegavam “desapropriação indireta”.

Remanescente

O palacete foi erguido em 1905 para ser moradia do fazendeiro de café Joaquim Franco de Mello, junto da esposa Lavínia e o filho Raphael. Segundo depoimento do bisneto do cafeicultor, o antiquário Renato Franco de Mello, o casarão foi reformado e ampliado em 1912 após projeto de um arquiteto francês, que teria modificado grande parte das características originais.

O relato do antiquário foi enviado ao governo estadual há cerca de cinco anos. No texto, o herdeiro também descreveu que a residência é composta por uma entrada, duas salas de visitas, uma sala de jantar, uma sala de almoço, três quartos e dois banheiros, além de um mirante com vista para o Vale do Anhangabaú. Além disso, originalmente detinha um jardim e um porão, derrubados durante o alargamento da Paulista.

O texto traz, ainda, a proposta de que o imóvel seja preservado e receba mobília de 1912. Falecido neste ano, Renato Franco de Mello chegou a residir no casarão nos anos 2000, período em que realizou alguns bazares no local. Na década anterior, tentou transformá-lo em boate por um breve período.

O palacete é considerado o único remanescente do primeiro assentamento da Paulista, que ainda preserva alguns espaços não residenciais mais antigos, como o Parque Trianon (1892) e o Instituto Pasteur (1904). Loteada em 1891, a via tem outros três casarões, sendo um deles a Casa das Rosas (1935), enquanto os demais são considerados exemplares tardios.

A história do começo da avenida é muito ligada aos fazendeiros de café, embora também tenha recebido moradores estrangeiros de classe mais abastada, como pontua Maria Cecília Naclério Homem, autora do livro O Palacete Paulistano e Outras Formas de Morar da Elite Cafeeira.

Descendente de um cafeicultor, Maria Cecília pontua que os fazendeiros vieram para a capital a fim de facilitar a administração dos negócios, estabelecendo-se também no Campos Elísios e em Higienópolis. “Vieram para São Paulo depois de 1872, com a construção da ferrovia. São Paulo se transformou na capital dos fazendeiros de café.”

Professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Joana Mello de Carvalho e Silva lembra que a Paulista nasceu como um empreendimento imobiliário para as elites, com casas unifamiliares. No decorrer do século 20, contudo, algumas residências passaram a ter comércio no térreo e edifícios começaram a ser erguidos, o que aumentou quando a avenida virou referência no mercado financeiro.

Mais recentemente, pontua a professora, a via passou por duas transformações, em polo de cultura (com a inauguração de espaços como a Japan House e o Instituto Moreira Salles) e de lazer (especialmente com a consolidação da Paulista Aberta aos domingos). Dentro desse cenário, está em uma fase mais diversificada de público, que tem acesso facilitado com as estações de Metrô e pode usufruir de opções de compra com preços mais acessíveis.

“Em função disso, além de tudo, virou um centro de manifestação de grupos LGBT”, lembra Joana. “Por isso, foi muito interessante fazer dali um Museu da Diversidade. A casa (Franco de Mello) conta essa história do residencial da elite que virou (parte) de uma avenida com uso mais democrático, em que a população LGBT se afirmou ao longo da história.”