Ruas tomadas por arrastões, comércio fechado, portas arrebentadas, mercados e prateleiras vazias. Das janelas dos prédios da Grande Vitória, no Espírito Santo, moradores abrem uma fresta da cortina para flagrar com câmeras de celular o corre-corre de criminosos que roubam veículos, ateiam fogo em meios às avenidas e atiram para acerto de contas. As cenas de centros urbanos em situação de total abandono lembram o desconcertante romance de José Saramago (1922-2010), “Ensaio sobre a Cegueira”. No livro, uma epidemia de saúde se alastra pela sociedade, toma proporções drásticas e desafia os acometidos pela doença a lutar pela sobrevivência. Nesse contexto, violência e pânico surgem como elementos inerentes ao ser humano que batalha pela vida. Ao contrário da ficção, a realidade capixaba expõe uma epidemia aguda no sistema de segurança pública. Desde o sábado 4, uma centena de assassinatos foi registrada no estado após a paralisação de policiais militares e, pelas calçadas, os poucos manifestantes que saem às ruas carregam faixas que dão o tom do sentimento que prevalece nos últimos dias: “somos reféns do medo.” A população está acuada pela inoperância do estado.

Poucos dias após as sangrentas rebeliões no Norte e Nordeste, que escancararam a superlotação em presídios e a disputa de territórios por grupos do crime organizado, outra face do sistema brasileiro de segurança pública também se mostra falida. O policiamento civil e, sobretudo, militar, não funcionam como deveriam, estão obsoletos e são mal administrados pelo poder público. Tal como a bomba relógio dos presídios, a precariedade do trabalho e os baixos salários foram o estopim para que familiares de policiais militares do Espírito Santo se instalassem nas portas dos quartéis e impedissem que as tropas fossem às ruas. O duelo entre a categoria, que reivindica um reajuste mínimo de 43% e máximo de 65%, e o governo, que decidiu passar o controle da segurança do estado às Forças Armadas, deixou a população exposta a uma das maiores ondas de violência da história capixaba. Dos 78 municípios que o estado possui, 14 já registraram homicídios. “Esse quadro é um sintoma da falência da segurança pública em função do sucateamento da polícia”, afirma Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Há um risco iminente desse movimento de espalhar para outros estados onde, com raras exceções, a situação não é muito melhor.”

NA ILEGALIDADE
Por ser considerado um serviço fundamental à sociedade, a Constituição Federal de 1988 proibiu militares de se sindicalizar e fazer greves – o que dá ao movimento o caráter de ilegal. Por isso, vem sendo utilizada a estratégia conhecida como greve branca, na qual as esposas reivindicam os direitos dos servidores diante das autoridades do estado. Porém, com o sentimento de pânico crescente entre a população e a ausência de um plano de contingência apresentado pelo governo, o poder de barganha dos militares se torna ainda maior. “A política de segurança e os governos passam a ser pressionados e ameaçados pelos militares”, diz Arthur Trindade, professor de sociologia da Universidade de Brasília e ex-secretário de segurança pública do Distrito Federal. A polêmica ganha amplitude porque, ao mesmo tempo em que a categoria tem benefícios como a aposentadoria integral está, segundo familiares, há sete anos sem receber reajuste. No estado, o salário base é de R$ 2.643. Apesar de, nos últimos anos, o Espírito Santo ter se consolidado como uma referência em segurança, deixou de lado aspectos cruciais, como a mudança no modelo de policiamento.

Os números do caos capixaba

121 mortes
violentas desde o sábado 4

200 furtos
de veículos em apenas um dia R$ 180 milhões de prejuízo ao comércio

3 mil homens
das Forças Armadas e da Força Nacional fazem o policiamento no estado

Nas últimas três décadas, o estado registrou uma das mais elevadas taxas de homicídio do país. Em 2009, atingiu a marca de 56,9 assassinatos por 100 mil habitantes. “Mas a partir de 2003, decidiu investir em segurança para tentar reverter os índices assustadores”, diz Pablo Lira, professor e especialista em segurança pública da Universidade Vila Velha. “Com isso, a secretaria foi reestruturada, um centro interligado de polícia civil e militar foi criado e o ES conseguiu desafogar o sistema prisional”, afirma. No entanto, as mudanças no funcionamento das polícias não foram suficientes. “O Brasil tem polícias sobrecarregadas e muito mal pagas, que sofrem com as condições precárias e o excesso de trabalho”, diz Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz. Prova disso é que, na esteira da paralisação dos militares, policiais civis decidiram na quarta-feira 8 entrar em greve após a morte de um policial em Colatina, município a 130 quilômetros da capital.

Em vez de solucionar gargalos estruturais, como a reforma no policiamento, as autoridades apenas entregaram o estado às Forças Armadas

As corporações militares do País têm efetivos gigantescos. Em São Paulo, um estado com 44 milhões de habitantes, tem 100 mil militares. No Espírito Santo, são 10 mil policiais para uma população de 3,8 milhões de pessoas. “O estado não consegue pagar bem efetivos desse tamanho”, diz o sociólogo da UnB. “Uma solução seriam as guardas municipais, ligadas às prefeituras, terem maior participação no policiamento de bairros, praças e áreas públicas.” Outro aspecto que deve ser revisto é o treinamento dos militares para reduzir a ocorrências de ações truculentas e da letalidade policial. Já existem os chamados “procedimentos operacionais padrão” que visam melhorar a ação do oficial com o cidadão. Mas estados como Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal ainda não adotaram a prática.

Em vez de solucionar essas falhas, o governo apenas entregou as cidades capixabas às Forças Armadas e à Força Nacional – cerca de 3 mil militares foram enviados ao estado. Em Vitória ou Vila Velha as cenas são semelhantes a regiões em guerra, com tanques e homens empunhando armamentos pesados pelas ruas. Um agravante é que, caso a greve chegue a outros estados, o efetivo das Forças Armadas poderá ter dificuldades para garantir a segurança. “A função do exército não é fazer o policiamento e o uso errático das tropas e isso poderá ter efeitos colaterais no serviço da polícia, como mortes violentas e o uso exacerbado da força”, diz Marques, do Instituto Sou da Paz. Na quinta-feira 9, o comando da Polícia Militar no Espírito Santo informou que começou a multar os mais de 700 policiais que participaram da paralisação. Porém, enquanto medidas mais corajosas, como a reestruturação do modelo de policiamento e a reforma na justiça criminal e no sistema prisional não forem adotadas, a população continuará dominada pelo caos e pela insegurança.

Greves e protestos de militares no País
As maiores paralisações dos últimos cinco anos

2012
Em janeiro, policiais militares do Ceará pararam por mais de uma semana. Fortaleza viveu um clima de pânico, o comércio fechou as portas e o transporte público parou de funcionar

Em fevereiro, policiais civis, militares e bombeiros pararam no Rio de Janeiro. A polícia militar prendeu mais de 20 policiais por se recusarem a sair às ruas ou incitar a paralisação. Policiais do Bope (Batalhão de Operações Especiais) foram convocados para garantir a segurança

Em fevereiro também, policiais militares da Bahia entram em greve. A paralisação durou 12 dias e foram registrados mais de 150 homicídios. A categoria reivindicava melhores condições de trabalho, aumento salarial e a criação de um plano de carreira

2014
Em abril, outra greve ocorreu em Salvador, Bahia. Foram registradas 35 mortes em apenas um dia na cidade. Cerca de 6 mil militares das Forças Armadas foram enviados ao estado. O comércio foi saqueado e o transporte público parou de circular

2016
Em junho, um grupo de bombeiros, policiais civis e militares protestou na área de desembarque do Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim (Galeão) com uma faixa onde se lia “Welcome to hell” (Bem vindo ao inferno). Às vésperas da Olimpíada, os servidores reclamaram das péssimas condições de trabalho