Desde que a Lava Jato se firmou como a maior operação anticorrupção da história do País, sua força parecia imbatível. Entrou no imaginário popular, ganhou manchetes no mundo e ajudou a criar o fenômeno Bolsonaro. Agora, a maré virou. Com o apoio do presidente, as forças-tarefa estão ameaçadas como nunca e o cerco contra os procuradores e as normas que garantiram a prisão inédita de políticos e altos empresários são ameaçadas em várias frente, incluindo a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. Esse novo momento foi sintetizado pelo procurador-geral, Augusto Aras, na terça-feira, 28. Em transmissão organizada pelo Grupo Prerrogativas, de advogados e juristas, ele afirmou que “é hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure”. Segundo ele, a força-tarefa em Curitiba tem mais dados armazenados que todo o sistema único do Ministério Público Federal. “Todo o MPF, em seu Sistema Único, tem 40 terabytes. A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba tem 350 terabytes e 38 mil pessoas com seus dados depositados. Ninguém sabe como foram escolhidos, quais foram os critérios”, afirmou. A manifestação aconteceu exatamente no momento em que o procurador-geral investe de forma mais contundente contra as forças-tarefa da Lava Jato. Em uma queda de braço com os procuradores do Paraná, ele havia determinado que todos os documentos fossem franqueados à PGR. Encontrou resistência, mas teve o apoio do presidente do STF, Dias Toffoli, que determinou a liberação dos documentos.

REAÇÃO Coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol rebateu Aras: “Ilação de que há caixas de segredos e milhares de documentos ocultos é falsa” (Crédito:PAULO LISBOA)

“Desconheço segredos ilícitos no âmbito da Lava Jato. Ao contrário, a Operação sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas cortes superiores, como STJ e STF”, rebateu o ex-ministro Sergio Moro. “A ilação de que há caixas de segredos no trabalho dos procuradores da República é falsa, assim como a alegação de que haveria milhares de documentos ocultos”, retrucou em nota a força-tarefa de Curitiba. Não há um consenso jurídico sobre o tema do compartilhamento de dados, que deve, para o bem das instituições, ser objeto de análise dos órgãos de controle. O sucesso e a dimensão da Lava Jato criaram a necessidade de se pacificar a questão sobre a independência dos procuradores, garantida na Constituição, e o controle centralizado da PGR em Brasília, o que já gerava atritos na gestão da antecessora de Aras. Mas a sinceridade das declarações do atual PGR contra a equipe da Lava Jato escancarou um movimento inédito contra a operação, apesar de ela ter sido referendada em várias instâncias. Ela resistiu até ao ataque hacker que desnudou todas as comunicações dos procuradores e do então juiz Moro.

“Existe em curso uma intensa movimentação para acabar com a Lava Jato e para desqualificar todos os atores públicos responsáveis pelo êxito dessa operação. Não podemos permitir esta inversão absurda que pretende absolver todos os que foram condenados pela Lava Jato e ao mesmo tempo condenar os responsáveis pela existência desta operação”, declarou o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). Membros da bancada pró-Lava Jato no Senado se disseram preocupados. Eles se reuniram em videoconferência com Augusto Aras e disseram que “não ficaram satisfeitos com as posições do procurador-geral”. Questionaram o PRG, e ele disse que não tinha provas de ilegalidades no uso dos dados dos investigados. “As manifestações e ações do PGR militam contra o combate à corrupção, enfraquecem a credibilidade do próprio MPF e foram objeto de críticas por parte dos senadores”, disse Alessandro Vieira (Cidadania).

CENTRALIZAÇÃO A PGR quer controlar as ações e arquivos das forças-tarefa
da Lava Jato (Crédito:José Cruz/Agência Brasil)

Um dia depois da declaração de Aras, o principal símbolo da Lava Jato, Sergio Moro, virou o alvo do presidente do STF, que pregou a ampliação da quarentena de seis meses para oito anos para ex-juízes. Isso interessa diretamente ao presidente Bolsonaro, que nomeou Aras para a PGR à revelia dos candidatos eleitos pelos seus pares e enxerga em Moro a maior ameaça à sua reeleição. Para o presidente, asfixiar a Lava Jato também ajuda na sua cooptação do Centrão, grupo fisiológico que tem vários membros investigados e já condenados pela operação. Além disso, o maior pesadelo jurídico do clã Bolsonaro, o escândalo das rachadinhas que envolve o senador Flávio Bolsonaro, nasceu de uma operação derivada de Curitiba. A demissão de Moro se deu exatamente quando o ex-ministro resistiu à interferência do presidente na Polícia Federal fluminense, o que gerou um inquérito em tramitação no STF. Nesse momento, desmontar a Lava Jato é conveniente para o lulismo, para o bolsonarismo e para o Centrão, além de todos os empresários e empreiteiros que tiveram seus negócios atingidos.

Esquerda sonha com CPI

As declarações de Aras revigoraram no Congresso a tentativa de criar uma CPI da Lava Jato. Há um pedido nesse sentido de autoria do deputado André Figueiredo (PDT), com apoio do PT, que aponta indícios de “fraude processual, prevaricação, advocacia administrativa e abuso de autoridade”. O requerimento de criação da CPI já foi lido em plenário, após a validação de 176 assinaturas, cinco a mais que o necessário. É a segunda tentativa de criar uma CPI contra o operação. A primeira, em 2018, foi frustrada. Ao longo do tempo, a operação precisou superar vários obstáculos. O STF mudou a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, beneficiando o ex-presidente Lula. O projeto no Congresso que visa restabelecer a norma era uma bandeira de Moro e dos parlamentares que defendem a Lava Jato, mas sua aprovação parece cada vez mais ameaçada. Há outros riscos para a operação. A pedido dos advogados lulistas, a Segunda Turma do STF deve julgar em breve a suspeição de Moro à frente do julgamento que condenou Lula no processo do triplex do Guarujá. O procurador Deltan Dallagnol, que coordena a Lava Jato no Paraná, enfrenta vários processos disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Três deles serão julgados em 18 de agosto.

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CERCO O presidente do STF, Dias Toffoli, referendou ação contra a Lava Jato (Crédito:Mateus Bonomi)

A fala de Aras, que é cotado para a vaga do STF que se abrirá em novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, desagradou diferentes correntes dentro do Ministério Público. Viram uma afronta à independência funcional. Para o PGR, “a correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção”. “O lavajatismo há de ser superado pelo natural, bom e antigo enfrentamento à corrupção”, disse o procurador-geral. Esse é o problema. O País pode retomar a tradição que vigorou até 2014, quando políticos e milionários não iam para a cadeia. A corrupção tem raízes históricas e está entranhada na sociedade há séculos, o que atrasa o desenvolvimento e aumenta a miséria. É a luta contra isso que a sociedade enxergou na operação. Numa ironia da história, Jair Bolsonaro pegou carona no “lavajatismo” para chegar ao poder e, a partir do Palácio do Planalto, conseguiu autonomia para interferir nos órgãos de controle e para articular com os outros Poderes o arrefecimento no combate à corrupção. Como fez Getulio Vargas, “montou no cavalo que passou encilhado” quando o destino sorriu e o momento histórico lhe favoreceu. Agora, pode enfraquecer o combate ao crime de colarinho branco e retomar a tradição patrimonialista que tanto favoreceu a elite, e tanto atraso trouxe ao País.


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