O professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, Ricardo Osório Galvão, 72, tem uma história de 50 anos de serviços públicos prestados em contribuição à ciência brasileira. Foi diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), até agosto do ano passado, quando foi exonerado da função por causa de sua postura em defesa da precisão dos dados do órgão. O Inpe sofreu críticas infundadas do presidente Jair Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na ocasião, o desmatamento da Amazônia havia disparado: a destruição era superior a 40% em relação ao período de medição anterior. Porém, o presidente preferiu colocar o trabalho de Galvão em dúvida, dizendo que o professor estava a serviço de ONGs e, por isso, os dados não eram críveis. Mas o cientista não se intimidou. Bateu de frente com o governo e, ao término do embate, seus alertas foram comprovados. O relatório técnico mais recente confirma as palavras do pesquisador: de agosto de 2019 até maio deste ano, o desmatamento na Amazônia aumentou 34%.

Como o Inpe monitora os incêndios na floresta?
O Inpe criou o programa Queimadas, expandido para todo o Brasil. Além de informar sobre o desmatamento, também informa a respeito das queimadas. Ao contrário do que o governo fala, as queimadas vêm depois do desmatamento. Quando eu era diretor, o Inpe usou duas vezes o Fundo Amazônia, implantando projetos bem elaborados, ao contrário do que diz o ministro Ricardo Salles. O Inpe monitora todos os biomas brasileiros.

Por que o ministro Ricardo Salles questionou os dados do Inpe?
Primeiro, vamos colocar pelo lado técnico e científico. Na realidade, qualquer dado científico pode ser questionado. Mas tudo dentro do que chamamos de metodologia científica. Nesse caso, a crítica é normal, e nós, do Inpe, sempre a aceitamos. Mas não é o que o governo está fazendo. E não acontece só no governo Bolsonaro. Em 2008, o Inpe detectou um grande desmatamento na Amazônia, mais de 50% dele no norte do Mato Grosso. O governador do estado na época, Blairo Maggi, disse que os dados do Inpe eram mentirosos e que deveríamos estar a serviço de alguém. Então, o presidente Lula e a ministra Marina Silva fizeram uma reunião com o Inpe e o Ibama e depois sobrevoaram as regiões afetadas. Foi quando caiu por terra a contestação do governador. Desta vez, quando o governo atacou, fizemos a mesma proposta, mas não me ouviram.

Desta vez o Inpe também estava certo.
Desde que entrou no governo, o presidente Bolsonaro sempre foi claro. Ele é contra essa questão de monitoramento, não acredita em desmatamento, em aquecimento global, e é contra os fiscais do Ibama. O próprio ministro Ernesto Araújo deu uma declaração que repercutiu mal em todo o mundo, dizendo que o aquecimento global era “um complô de comunistas”. É um governo realmente sem nenhuma formação. É o que eu chamo de ignorância autoritária.

Existem outros interesses?
Eles querem tirar o monitoramento do Inpe. O ministro Ricardo Salles começou, em janeiro, a criticar os dados do Inpe, dizendo que não eram suficientemente precisos. Respondi com notas técnicas e com ofícios enviados ao ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes. Nunca houve resposta.

Como explicar a falta de resposta?
Simplesmente não é do interesse do governo. Eles são bastante ignorantes. Esse tipo de dados não é só produzido pelo Inpe. A Nasa e a Agência Espacial Europeia também têm dados sobre o desmatamento da Amazônia. Como diz o professor Carlos Nobre, há a clara intenção de esconder o desmatamento e continuar estimulando a mineração ilegal. No ano passado, o general Heleno deu uma declaração para a BBC dizendo que os dados do Inpe estavam sendo manipulados. O governo é muito ignorante quanto à presença do Inpe no cenário internacional.

O governo crê que “passando a boiada” a Amazônia irá se desenvolver. Qual é a sua opinião?
É uma visão reacionária e ignorante. No caso da Amazônia, está baseada no que fez o governo militar. Nos anos 1970, o governo, preocupado com a questão de soberania, dizia que teria que ocupar a Amazônia. E qual era o projeto? A ocupação “seguiria os passos do boi” e o então ministro Delfim Neto dizia que a forma de se ocupar a região era transformar aquilo num faroeste. O xerife chegaria depois.

Mas como deveria ocorrer essa ocupação?
A produção de açaí na Amazônia, por hectare, é dez vezes mais rentável que a produção de soja, e muito mais produtiva do que o gado. Cerca de 35% do desmatamento da Amazônia acontece em terras públicas. A terra é invadida, coloca-se o gado, mas não para criação, e, sim, para ocupação. A forma rentável de se explorar a Amazônia é respeitando a sua biodiversidade. Mas o governo não acredita nessa possibilidade.

Qual foi o cenário apresentado na última nota técnica do Inpe sobre o desmatamento?
Um aumento enorme do desmatamento e uma grande preocupação com as queimadas que viriam a seguir. Percebemos que poderia coincidir o pico de queimadas com o do coronavírus. As queimadas acentuam as doenças de pulmão. Então, foi feito um relatório detalhado ao governo. Além das queimadas, o relatório dizia que o desmatamento de agosto de 2019 a junho desse ano iria passar de doze mil Km2.

Isso compromete o Acordo de Paris?
Pela obrigação que o Brasil assumiu no Acordo de Paris, em 2015, o desmatamento não poderia ser maior que 3900 Km².

Pode se atribuir essa destruição ao governo Bolsonaro?
O problema foi o discurso do governo, que incentivou os desmatadores. Em 2004, quando o sistema Deter começou a funcionar, o Inpe e a ministra Marina Silva passaram a atuar fortemente contra o desmatamento. Os produtores logo perceberam que o discurso havia mudado e começaram a usar técnicas modernas. O resultado foi que o desmatamento baixou e a curva de produção agrícola continuou aumentando. A, mensagem do governo é muito importante. Se ficar claro que o desmatamento ilegal não será permitido, eles mudam o jeito de explorar, porque têm que sobreviver.

E os mineradores?
O presidente Bolsonaro acusou ONGs de estarem praticando incêndios. Isso aconteceu no Estado do Pará, em Itaiutuba, e houve um incêndio causado por mineradores. Bolsonaro acusou as ONGs, recebeu os mineradores e disse que deveríamos incentivar a mineração, ao invés de preservar a floresta. Então, aqueles que estão ilegais, percebem que terão costas largas no governo.

Por que a Amazônia é tão importante cientificamente?
Há três aspectos principais. Primeiro, o aquecimento global. Temos que diminuir as emissões de gases do efeito estufa, principalmente o gás carbônico. E a melhor maneira de fazer isso é com o crescimento de florestas tropicais. O segundo ponto é que nosso regime hidrológico depende da Amazônia. Uma árvore na Amazônia bombeia por um mecanismo chamado evapotranspiração de 600 a 1000 litros de água por dia para a atmosfera. E os ventos que vem sobre o Atlântico, passam pelo Nordeste, pela Amazônia, carregam essa umidade, que bate nos Andes, e volta para o Centro-Oeste e o Sul.

E o terceiro aspecto?
O terceiro aspecto é a biodiversidade, que ainda é extremamente desconhecida. Existe uma grande quantidade de produtos a serem explorados.

Que riscos corre a Amazônia?
Já desmatamos 20%. Isso é preocupante. Se a Amazônia for desmatada entre 25% e 30%, a tendência é de ela se transformar em uma savana, com riscos irreversíveis. No sul da Amazônia, no chamado arco do desmatamento, que vai do Maranhão até o norte do Mato Grosso, a estação de secas dura de duas a três semanas mais do que no resto da Amazônia. A temperatura está dois graus acima.

Se nada mudar, o que acontecerá com a Amazônia?
Esse ano será desmatado um pouco mais de dez mil Km2 e se nada acontecer, isso vai se repetir no próximo ano. Nesse ritmo, vamos alcançar os 22% de desmatamento até o final do governo Bolsonaro. Uma tragédia.

Qual é a situação atual da produção cientifica nacional?
Desde a década de 90 cresceu muito. Saímos de uma produção na ordem 0,8% da ciência mundial, para 2,1%. Isso começou no governo FHC, cresceu muito no governo Lula e, infelizmente, começou a cair no governo Dilma e agora, com o governo Bolsonaro, a situação é desastrosa.

O que representa esse desastre?
Um corte enorme em bolsas de mestrado e doutorado, além de uma interlocução difícil com a comunidade científica. Essa recusa ao diálogo é terrível.

Como o senhor vê a atuação do ministro Pontes junto à área cientifica?
Ele nunca se importou com o Inpe, mesmo sabendo da qualidade dos seus dados. Mas isso se deve à postura militar, um problema sério no governo Bolsonaro. Quando Pontes assumiu, loteou a pasta aos militares. Antes, cientistas eram chamados para os cargos comissionados e desta vez foram 14 militares.

Mas o que mudou com a chegada dos militares?
A mentalidade. Porque em ciência e tecnologia, toda a teoria científica tem que ter método. O contraditório permeia a ciência. As decisões são tomadas em órgãos colegiados. Com os militares, isso não acontece. Eles não aceitam essa discussão.

É o que acontece também no Conselho da Amazônia, presidido por Hamilton Mourão?
Sim, lá há 15 militares. Quando ele foi indicado fiquei esperançoso, porque ele é uma pessoa mais sensata, mas sua atuação acabou aquém do esperado. Quando ele fala de preservação da Amazônia, é sob a ótica de vigilância e não de monitoramento.

O que aconteceu no dia em que o senhor foi exonerado?
Estávamos na Universidade Federal Fluminense, trabalhando numa banca de tese. Senti cair minha pressão arterial, praticamente desmaiei. Não esperava, após 50 anos de serviços públicos prestados, receber ataques desse tipo do presidente da República.