Para invadir a Ucrânia, Vladimir Putin usa a estratégia desenhada pelo general Valeri Gerasimov, chefe do Estado Maior das Forças Armadas e vice-ministro da Defesa, o “cérebro” por trás desse confronto que está envolvendo a Europa e traumatizando todo o planeta. Essa análise foi feita por Renato Marques, que falou à ISTOÉ sobre sua experiência como embaixador na Ucrânia, país que passou por rápidas transformações, cresceu nas últimas duas décadas e agora está sob ataque do líder russo. O diplomata acumulou essa função com a de embaixador na Moldávia, nação na fronteira oeste da Ucrânia, que convive com uma província rebelde em seu território, a Transnístria. Essa região pode ser uma nova frente de expansão da guerra promovida pelos russos. Para Marques, os milhares de ucranianos refugiados são mão de obra qualificada e podem ser bem recebidos na Europa. Sobre as relações com o Brasil, ele lembra que a Ucrânia vende às empresas brasileiras dutos, turbinas e derivados para produção de insulina. Ressalva, porém, que o programa espacial bilateral já foi abandonado, depois de pressões da Rússia.

A União Europeia e os EUA impuseram fortes sanções à Rússia. A Ucrânia está sozinha, como se queixou o presidente Zelensky?
A posição da OTAN é de cautela, porque a Ucrânia não é integrante da aliança e o conflito direto entre OTAN/EUA e Rússia, potências nucleares, pode levar a um Armagedom. A opção por sanções pode infligir danos à Rússia, sobretudo no campo financeiro. Assim como as demonstrações na Maidan contribuíram para fortalecer o sentimento de nacionalidade ucraniana, a invasão da Ucrânia teve, até agora, o efeito surpreendente de unir a Europa como praticamente uma única voz, algo inesperado no contexto histórico recente.

Putin agiu premeditadamente? Planejou a guerra durante muito tempo?
A ofensiva armada da Rússia contra a Ucrânia é a face visível de uma operação mais complexa e articulada, que envolveu, desde 2014 pelo menos, uma campanha prévia de desinformação e fake news, destinada a desviar a opinião pública do que seria a maior operação bélica na Europa no século 21, em total desconsideração aos princípios do direito internacional, à letra da Carta das Nações Unidas e a compromissos como os expressos no Memorando de Budapeste, de 1994. As ações empreendidas desde então seguiram à risca o roteiro básico da doutrina estratégica elaborada pelo general Valeri Gerasimov, chefe do Estado Maior das Forças Armadas e vice-ministro da Defesa da Rússia, no sentido de lançar uma “guerra híbrida” (sem distinção entre meios civis e militares) contra a Ucrânia.

O êxodo de 4 a 5 milhões de refugiados também fez parte de um plano, para atingir os vizinhos?
Os países acolherão os ucranianos, mas não há garantias de que permaneçam; a tendência é que sigam adiante, identificando melhores oportunidades. Como a mão de obra ucraniana tem boa qualificação, assim como os profissionais liberais, será mais fácil incorporá-los ao mercado de trabalho. Quanto a desestabilizar politica e economicamente os países europeus, não há como comprovar, embora se possa recordar os planos declarados de Putin de provar que “a democracia liberal é obsoleta” e “ultrapassou seus propósitos”.

Como ficam a Belarus e a Moldávia, nesse conflito? E Eslováquia e Hungria, que também fazem fronteira com a Ucrânia?
A Belarus estendeu seu período de “paz social”, ao contrário de outras economias que fizeram a transição entre o socialismo e o capitalismo. Com isso, preservou empregos, mesmo que às custas da modernização e competitividade de suas indústrias. Para tanto, se valeu de importações a preço subsidiado de gás e petróleo da Rússia e de empréstimos da Comunidade Econômica Euroasiática — vale dizer, da mesma fonte. Mais cedo ou mais tarde, o preço seria cobrado (como agora). A Moldávia tem tido um papel secundário nos eventos. Não é membro da OTAN e não parece pretender esse ingresso, até porque tem em seu território uma província rebelde, a Transnístria, que ocupa uma faixa de terreno entre a Ucrânia e a própria Moldávia, fortemente amparada pelo Rússia (e que é mais um “conflito congelado” da época da extinção da URSS). Os demais países da Europa Oriental estão sob o guarda-chuva da OTAN e de seu sistema de defesa coletivo. Não é razoável pensar que possam estar no radar de Putin (a menos que julgue a aliança ocidental tão soft que se disponha a pensar no impensável).

E o papel da China nesse conflito?
Está acompanhando com interesse, para avaliar sua repercussão potencial na “questão Taiwan”. Mas não creio que esteja feliz com as ações de Putin na Europa, depois de gastar bilhões na “reconstrução” da Rota da Seda.

Para justificar sua ação, Putin disse em pronunciamento que a Ucrânia “não é um país”. O sr. concorda?
Do século IX ao XIV, a Rus de Kiev foi o maior e mais próspero Estado medieval no Leste da Europa. Basta visitar os mosteiros de Perchesk Lavra e de Santa Sofia, do século XI, e a catedral de São Miguel, do século XII, com sua arquitetura bizantina e seus magníficos afrescos e mosaicos, para se dar conta de que Kiev era também o centro do cristianismo ortodoxo no mundo eslavo. A fragmentação da Rus e as subsequentes invasões mongóis, sobretudo a partir de 1240, acentuaram a decadência do Principado. Seus nobres buscaram outros destinos, vindo então a fundar a Rus de Moscou, que se tornou o novo poder hegemônico. Das alegações descabidas que ouvimos a respeito da Ucrânia, para “fundamentar” a invasão da Rússia, essa de “não ser um país” talvez seja a menos convincente.

O sr. foi embaixador na Ucrânia de 2003 a 2009, cumulativamente com a Moldávia (e em Belarus entre 2011/2014). Quais suas impressões do país e do povo?
A Kiev que encontrei em 2003 em nada pode ser comparada à que deixei, em 2009. O inglês era desconhecido em bares e restaurantes, com cardápios em cirílico. Rapidamente essa situação foi sendo alterada e Kiev se tornou uma cidade cosmopolita e dinâmica, mas manteve o padrão soviético de excelentes concertos, óperas e espetáculos circenses, a preços “soviéticos” (populares). Não era perceptível um sentimento negativo com relação à Rússia. Esse quadro mudou radicalmente durante as eleições presidenciais de 2004, com a “revolução laranja”, que revelou um grau de insatisfação popular absolutamente invisível aos olhos dos estrangeiros. A reedição dos protestos na Maidan (Praça da Independência), em 2014, consolidou o sentimento nacionalista ucraniano e explica a determinação com que enfrenta as tropas russas, em maior número e mais equipadas. No período em que estive em Belarus, Minsk era menos cosmopolita que Kiev, mas tinha uma arquitetura harmônica, era muito bem organizada e segura — mesmo sem policiamento ostensivo. Permaneciam símbolos do período soviético: a foto mais buscada pelos turistas brasileiros era sob as placas do cruzamento das avenidas Karl Marx e Lênin.

Há unidade entre os ucranianos ou existe o risco de o país se fragmentar?
O Leste da Ucrânia sempre esteve mais próximo da Rússia, pela posição geográfica e culturalmente; o lado ocidental tem uma história distinta, vínculos com a Polônia e a Comunidade Lituano-Polonesa. Essas diferenças tendem a motivar posições antagônicas, por exemplo quanto ao interesse em ingressar na OTAN, mas não no tocante a integrar a União Europeia. Algo que poderia ocorrer entre distintas regiões brasileiras, sobre algum tema em particular, sem que isso motive ou justifique ameaças à integridade do país.

O presidente Volodimir Zelensky era comediante; Vitali Klitschko, o prefeito de Kiev, boxeador. Representaram um voto de protesto?
Não vejo a eleição dos dois como voto de protesto. O primeiro tinha a simpatia popular: era da TV, com grande exposição na mídia, e não uma “aberração”, como Putin e seus seguidores querem fazer crer. Basta lembrar as aparições de Trump em talk shows, programas de auditório e no reality show O Aprendiz, como propulsoras de sua persona pública. Outros populistas seguiram roteiro semelhante. Klitschko é prefeito de Kiev desde 2014 — foi reeleito em 2020. É outra celebridade que foi bem sucedida na política, a exemplo do “Exterminador” Arnold Schwarzenegger, um bom governador da Califórnia, e o caubói canastrão Ronald Reagan, que como presidente dos EUA venceu a Guerra Fria sem disparar um tiro. Quanto aos nazistas nos comícios de Zelensky, têm o mesmo peso (nulo) que os apoiadores do AI-5 e da ditadura nas manifestações de 2015 no Brasil, contra o governo de Dilma Rousseff.

Como evoluíram as relações comerciais do Brasil com a Ucrânia no seu período de trabalho na região?
Eram basicamente realizadas por grandes entidades e empresários, que entabulavam entendimentos para compra, pelo Brasil, de dutos (Petrobrás), turbinas (coordenadas pelo MME), usinas de pequeno porte (de interesse da Usiminas) ou para a transferência de tecnologia para a produção de insulina (FioCruz) e a implementação do Programa Espacial bilateral, assinado no governo FHC, com vistas ao lançamento de satélites, com foguetes ucranianos da classe Cyclone a partir da base de Alcântara, no Maranhão.

Houve algo que ficou por fazer? Por exemplo, o programa espacial Brasil-Ucrânia?
O programa sofreu pressões de vários lados. Os diplomatas russos percorreram com freqüência a Esplanada dos Ministérios buscando desacreditar a capacidade ucraniana para levar adiante o projeto. O sistema de guia dos foguetes é de domínio tecnológico dos EUA e da Rússia, que não viam com bons olhos o ingresso da Ucrânia no fechado clube espacial (embora ela participasse de algumas fases dos lançamentos americanos, no Sea Launch, e russos, em Baikonur). Mesmo no Brasil, havia reticências, visto que alguns setores consideravam que a iniciativa desviava a atenção do programa espacial brasileiro (que não decola). Tudo somado, o ambicioso projeto foi enterrado por um decreto do governo Dilma Rousseff sob a alegação de um “desequilíbrio na equação tecnológico-comercial”.