Tem gente se mobilizando para iniciar um impeachment contra Jair Bolsonaro. Puseram abaixo assinado para circular na rede. Convocaram manifestação para o fim de semana. Esses gestos encontram algum eco em Brasília, onde se discute, em várias esferas, se as mortes por asfixia de cidadãos do Amazonas não seriam o gatilho necessário para expelir Bolsonaro de uma cadeira que ele não sabe ocupar. 

Infelizmente, essa energia está mal direcionada. É preciso focá-la em outro lugar. 

O cartunista Caco Galhardo criou um personagem chamado Tutu, o Vidente Óbvio. Quem vai consultá-lo pouco antes do Natal descobre, por exemplo, que vai ganhar peso por volta do dia 25. 

Olhando minha bola de cristal, faço hoje uma previsão digna do presciente Tutu: não haverá abertura de impeachment na próxima semana. 

Dar a largada nesse processo é prerrogativa do presidente da Câmara dos Deputados. Rodrigo Maia não tomará essa iniciativa agora, pois faltam dez dias para o fim de seu mandato e ele não sabe se o seu grupo político vai manter o controle da casa. 

Por isso, a energia de quem se preocupa com a política deveria estar concentrada neste momento em impedir que o deputado Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, saia vitorioso na eleição para comandar a Câmara, que acontece em 1º de fevereiro. Isso sim deveria ser tema de abaixo assinado e passeata.

Impedir que o bolsonarismo domine a Câmara é condição sine qua non para que a carta do impeachment continue na mesa e possa eventualmente ser usada. 

Se não houver pressão sobre os deputados de fora para dentro, eles decidirão com base apenas nos seus interesses paroquiais. 

Arthur Lira está fazendo muito bem o jogo do toma lá dá cá (quem vai ocupar tal cadeira na mesa diretora, quem vai presidir tal comissão), contando ainda com munição contrabandeada pelo Planalto (cargos no governo). Além disso, ele promete abrir o leque de discussões no plenário, levando em conta as pautas das várias bancadas. Ele diz que Rodrigo Maia controlou a pauta com mão de ferro, e que vai fazer o inverso. 

Hoje, a candidatura de Lira parece estar em crescimento, roubando apoios de seu principal adversário, Baleia Rossi (MDB-SP). Nesta quinta-feira ele conseguiu, por exemplo, virar a mesa no PSL, que estava comprometido com o emedebista.

Ora, direis: entre Arthur Lira e Baleia Rossi, não é tudo a mesma coisa? No fim das contas, os dois não representam o mesmo centrão? É uma dúvida pertinente. O próprio Lira tem usado uma variação desse argumento para dizer que não faz sentido estigmatizá-lo como “homem de Bolsonaro”. Segundo ele, o grupo de Baleia Rossi e Rodrigo Maia votou com o governo nas principais questões dos últimos dois anos. Todos seriam, de fato, parte de uma mesma base. 

Isso é uma falácia. Bolsonaro chegou ao Planalto com duas pautas: a das “reformas estruturantes” e a dos costumes e interesses setoriais. A primeira ele tomou emprestada de Paulo Guedes. Na segunda estão os temas legitimamente bolsonaristas.

A base que se formou na primeira metade do mandato de Bolsonaro, e que de fato misturou Baleia Rossi e Arthur Lira, permitiu que se avançasse um pouco na pauta das reformas, e também que se aprovassem leis como a do novo Fundeb e a do Marco do Saneamento. Além, é claro, do pacote de auxílio emergencial da pandemia. 

Dizer que essa base é governista ou bolsonarista é distorcer a realidade. Na maior parte dos debates o governo ficou a reboque, sempre meio perdido, sempre muito incompetente. 

A diferença realmente significativa entre Baleia Rossi e Arthur Lira não está naquilo que eles votaram, mas naquilo que cada um está disposto a manter engavetado. 

A pauta bolsonarista não entrou em discussão durante o mandato de Rodrigo Maia. Com Rossi, deve continuar represada. Com Lira, a tendência é que se abra a caixa de Pandora. 

Nem vou entrar no mérito de cada assunto. Fiquemos apenas na questão das prioridades: alguém acha mesmo que em meio a um cenário de crise econômica e social como o que o país atravessa a Câmara deve gastar meses discutindo um assunto divisivo como, por exemplo, o porte de armas, enquanto a reforma tributária, também ela difícil de aprovar, fica na espera?

Com Lira, em vez de discutir assuntos que podem mudar a forma como o país funciona, a Câmara vai mergulhar de cabeça no pântano ideológico do bolsonarismo. O presidente vai se sentir à vontade como nunca para dizer e fazer barbaridades, e as chances de pagar a conta num processo de impeachment cairão quase a zero. 

Esta eleição para a presidência da Câmara é atípica, porque pode realmente influir no ambiente político do país. Os deputados precisam entender que não se trata apenas de uma questão interna, e precisam saber que há gente prestando atenção.  

Não é hora de tergiversar como fazem alguns partidos – o Novo, por exemplo. O fundador da legenda está fazendo campanha pelo impeachment. O governador Romeu Zema apoia Arthur Lira, sob a justificativa estapafúrdia de que ele é o nome melhor posicionado para conduzir reformas. Enquanto isso, o deputado Marcel van Hatten decide se candidatar à presidência da Câmara, para marcar posição. É patético. 

É preciso ter prioridades. A prioridade agora é assegurar que a Câmara não cairá nas garras de Jair Bolsonaro.