Com primeira trégua em muitos anos e perspectiva de negociações de paz, Iêmen pode estar inaugurando uma nova era. Mas processo tem falhas graves, como deixar de fora rebeldes houthis, também protagonistas do conflito.Para os muçulmanos de todo o mundo, o mês de jejum do Ramadã é um símbolo de paz, perdão e recomeço. No Iêmen, a esperança de muitos é, acima de tudo, que ele represente o fim de sete anos de guerra civil: desde 2015 os houthis respaldados pelo Irã combatem o governo oficial, o qual, por sua vez, responde com uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita.

Desde 2 de abril está em vigor uma trégua: pela primeira vez em seis anos as armas se calam em todo o país. No fim da semana, o presidente Abed Rabbo Mansur Hadi anunciou sua renúncia, um Conselho Presidencial recém-criado assumirá em seu lugar.

O grêmio de oito membros é encabeçado por Rashad al-Alimi, que foi ministro tanto do Interior quanto das Relações Exteriores sob o presidente Ali Abdullah Saleh, assassinado por rebeldes houthis. O grupo contará com o apoio de um Comitê de Conciliação, com 50 integrantes, além de receber diretrizes dos nove membros do Comitê Legal.

A principal tarefa do Conselho Presidencial é coordenar as negociações de paz com os houthis, para dar fim à violência no país. Como explicou o ex-presidente Hadi em seu discurso de renúncia, a meta é estabelecer uma “solução política final” e um cessar-fogo.

Entretanto está também claro que os rebeldes nem têm um representante no novo grêmio presidencial, nem participaram das conversas preliminares na capital saudita Riad. Assim, eles não demoraram em descartar o Conselho, o que abafa as esperanças de paz em breve.

“Tudo o que diz respeito ao presente e passado do Iêmen deve ser decidido dentro do Iêmen. Negociações fora de nossas fronteiras são uma farsa e servem, no máximo, como diversão para os Estados de agressão”, sentenciou o porta-voz dos houthis, Mohammed Abdul Salam.

Consenso difícil

O analista de conflitos Hisham Al-Omeisy, que já esteve preso pelos combatentes houthis, é cético em relação ao processo de paz: “É questionável como os membros do Conselho Presidencial vão interagir, pois têm históricos e agendas muito divergentes.”

Um dos pontos de controvérsia é, por exemplo, se o sul iemenita deve se separar dos houthis no norte, ou se a unidade nacional deve ser mantida. “E esse é só um aspecto”, aponta Al-Omeisy, “outro é a racionalização das Forças Armadas e as organizações de segurança no país. Quem, no fim das contas, terá o poder sobre os militares, o aparato de segurança interna, o Ministério da Defesa?”

A situação do Iêmen permanece extremamente complicada. Após sete anos de guerra de procuração entre o Irã e a Arábia Saudita, o estado humanitário e da infraestrutura é péssimo. Para agravar o quadro, seca, a pandemia de covid-19 e irregularidades nas importações de gás devido à guerra na Ucrânia.

As Nações Unidas estimam que, até o fim de 2021, o conflito fizera 377 mil vítimas, entre as quais 144 mil crianças; cerca de 24,1 milhões – ou seja, um terço da população – necessitam assistência humanitária; outros 3 milhões se refugiaram no exterior desde 2015.

Dinheiro é importante, embora pouco

Como parte envolvida no conflito, a Arábia Saudita reagiu com rapidez aos desdobramentos políticos mais recentes: tanto ela quanto seu aliado Emirados Árabes Unidos disponibilizaram, cada um, o equivalente a 1 bilhão de dólares em ajuda para o Iêmen.

Os sauditas prometeram ainda outro bilhão de dólares para a compra de petróleo e para projetos de ajuda ao desenvolvimento. “As ajudas financeiras são um grande passo”, comenta Jens Heibach, do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (Giga): o dinheiro é importante, embora essas somas sejam insignificantes, comparado ao que a ONU calcula que seria necessário.

Além disso, é decisivo as verbas serem realmente transferidas, e “a questão é também até que ponto os houthis poderão participar das negociações sobre a aplicação do dinheiro”, reforça Heibach. Ainda assim, as injeções financeiras e a formação do Conselho Presidencial são um sinal positivo.

Antes mesmo dos acontecimentos atuais, a ONU já tomara uma iniciativa ousada para proporcionar paz entre os houthis e a Arábia Saudita: o emissário especial das Nações Unidas para o Iêmen, Hans Grundberg, foi encarregado de elaborar um fundamento para as conversações.

No entanto, a iniciativa desconsiderou, de fato, a existente Resolução 2.216 do Conselho de Segurança da ONU, que prevê que os houthis sejam desarmados e abram mão de seu território. Até poucas semanas atrás, a coalizão militar sob liderança saudita insistia que se mantivessem essas condições.

Heibach, do Giga, confirma que Hans Grundberg basicamente erodiu a Resolução 2.216, contudo abrindo o caminho para “uma solução em que a Arábia Saudita mantém a compostura”: segundo o acordo proposto, os rebeldes podem ficar com suas armas, mas deixam de disparar mísseis de cruzeiro.

Por sua vez, os sauditas suspenderam o bloqueio dos portos sob controle houthi, assim como do aeroporto de Sanaa. O pacto já trouxe primeiros resultados: no começo de abril, um navio desembarcou no porto de Hodeida, levando alimentos e medicamentos.