Há quatro anos o País não via autoridades defendendo a normalidade democrática, o respeito aos cidadãos e o compromisso com as políticas públicas. Assim, foi com enorme alívio e esperança que a Nação assistiu às cenas da posse do novo presidente , Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º. A tensão na véspera com as ameaças terroristas, desbaratadas pela ação firme do STF, deu lugar à festa cívica e à comovente passagem simbólica do poder. Jair Bolsonaro, que já havia deixado o País para se abrigar em uma casa na Flórida (EUA), não precisou passar a faixa presidencial. Ela foi entregue a Lula por representantes da sociedade civil, inclusive Raoni, o maior ícone dos povos indígenas, numa encenação tão emblemática quanto inteligente.

“Nossa tarefa é consolidar a base. Diálogo, construção e respeito ao Legislativo” José Guimarães, líder do governo na Câmara

Foi um momento de otimismo, que deu lugar nos dias seguintes à difícil costura política para traduzir em ação tantas expectativas geradas após quatro anos de desmonte da máquina pública e de um extremismo que pareceu em várias ocasiões deixar o País à beira de uma guerra civil. Lula foi hábil ao desbaratar o ambiente conturbado nos quartéis, e o fim dos acampamentos golpistas pelo País (hoje praticamente extintos) mostra que o primeiro passo para a pacificação foi dado.
A sucessão de posses dos 37 ministros ao longo da semana confirmou o grande número de partidos contemplados (dez no primeiro escalão, mais do que nos dois primeiros mandatos do petista), uma maior diversidade (serão 11 mulheres, a maior participação feminina da história), uma justa e inédita pasta dos Povos Indígenas e o foco nas ações sociais e no combate à desigualdade.

DIVERSIDADE O presidente com a equipe: 37 ministros, maior participação feminina e pastas inéditas, como a dos Povos Indígenas (Crédito:Ricardo Stuckert)

É uma excelente notícia que pastas vitais como Saúde e Educação estejam fortalecidas e desideologizadas. A Saúde, em especial, sob a liderança da ex-presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, é composta pela equipe mais técnica da Esplanada. A extinção da Funasa, órgão que virou fonte de escândalos, irritou representantes do Centrão no Congresso e eliminou um notório balcão de negócios, apesar da crítica de alguns servidores de carreira. Trata-se de um alento após a ação criminosa durante a pandemia, do aparelhamento militar incompetente e do show de horrores com a tentativa de compra superfaturada de vacinas, que renderam nove indiciamentos a Jair Bolsonaro na CPI da Covid.

O MEC também ganhou um perfil mais respeitável, como há anos não se via. Ainda que tenha ganhado uma direção puro-sangue do PT, pelas mãos do ex-governador Camilo Santana, o bilionário Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), outra mina de ouro cobiçada pelo Centrão, será presidido pela ex-secretária de Fazenda do Estado do Ceará, Fernanda Macedo Pacobahyba, um nome técnico. Ainda mais positiva é a indicação da ex-governadora Izolda Cela como secretária-executiva. Ela, que chegou a ser cogitada para dirigir a pasta, foi a responsável pela revolução educacional que colocou escolas públicas do interior cearense na liderança do Ideb, um feito reconhecido internacionalmente. A educação básica, justamente, será a prioridade do ministério, anunciou Santana.

DE VOLTA Na primeira foto oficial no Planalto, Lula despacha com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (Crédito:Divulgação)

A posse de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente foi a mais concorrida da nova gestão, mostrando a sua importância. Ela reforça o governo Lula em várias frentes simultâneas. Como uma das maiores autoridades climáticas do planeta, ela pode recolocar o País na liderança mundial na área, reafirmando o compromisso da gestão com o combate ao desmatamento. Assume o papel de guardiã confiável contra a destruição da Amazônia, uma preocupação mundial. Funciona, na prática, como uma embaixadora ambiental, azeitando a nova política externa do País, ainda que não esteja ligada ao Itamaraty. E, por ter virado uma crítica dos governos do PT no passado, Marina também materializa na prática a “frente ampla”, essencial para tirar o caráter essencialmente petista da gestão (um fato, apesar da participação total de 14 partidos).

Se a paisagem na Esplanada volta aos poucos à rotina, com um sentimento positivo, o mesmo não se pode da área econômica, da qual dependerá o sucesso da futura administração. O principal nome do governo, Fernando Haddad, ministro da Fazenda, ainda não apresentou diretrizes convincentes para a área, não vence a desconfiança do setor empresarial e financeiro, coleciona inimigos no próprio PT e foi desautorizado na largada pelo próprio presidente, que determinou a continuação da desoneração dos combustíveis, contra a sua orientação.

Dúvidas na economia

Cientista político e professor da Universidade Federal do Paraná, Bruno Bolognesi critica a demora da Fazenda em apresentar o plano de ação em meio ao caos econômico. “Sempre houve um consenso de que Haddad era um nome difícil para o mercado e para a articulação política. Ao escolhê-lo, portanto, Lula deveria ter feito uma aposta com bons termos: um ministério blindado de ideias retrógradas e um plano econômico concreto”, avalia. “Até agora, o governo apenas se apega à fama, ao legado de Lula. Mas não diz como fará o Brasil crescer, como pretende conter a inflação, de que forma ampliará o poder de compra da população mais pobre. Não há qualquer sinalização. Não sabemos, por exemplo, se ocorrerá a reedição da política dos campeões nacionais da era Dilma Rousseff, se a aposta será na industrialização ou na exportação”, critica. Pesquisadora do Departamento de Ciência Política da USP e do Cebrap, Daniela Constanzo avalia que vai ser difícil criticar as primeiras iniciativas do governo Lula 3 em áreas como Saúde e Educação, mas o mesmo não se pode dizer em relação à economia. “O mercado tem demonstrado bastante preocupação, há muita nebulosidade, muitas incertezas”, diz.

Isso abalou os agentes econômicos nos primeiros dias do ano, em total contraste com a euforia em Brasília.
A Bolsa caiu 5% nos primeiros dias do governo, o dólar atingiu a cotação mais alta em seis meses e os juros futuros ultrapassaram 13%, num sinal de pessimismo com os rumos da economia.

A descrença persiste nos últimos meses. As empresas listadas em Bolsa chegaram a perder mais de R$ 500 bilhões em valor de mercado desde a eleição de Lula, que tripudiou sobre o nervosismo do “mercado” durante a campanha. Agora, o mandatário deveria começar a se preocupar. Se o mau humor não for revertido, as perspectivas de crescimento (modestas) serão ainda menores, enquanto a inflação seguirá pressionada e os juros demorarão ainda mais a cair.

Há razões para esse prognóstico negativo. O governo já tinha determinado o fim das privatizações em curso, inclusive do Porto de Santos, que deveria ser modernizado para destravar as exportações, e assinalado que pretende revisar o marco do saneamento, uma medida que já atraiu investimentos privados bilionários em poucos meses e tem o potencial, depois de décadas, de resolver o problema da falta de água potável e esgoto tratado no País. Depois da péssima repercussão, a secretária-executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, disse que o governo iria rever uma Medida Provisória já editada que tirava a regulação de saneamento da Agência Nacional das Águas (ANA), uma das preocupações com retrocessos nesse setor. Também causaram apreensão recuos previstos na lei das estatais e na reforma trabalhista. A possível volta do controle artificial sobre os preços dos combustíveis foi um dos ingredientes do derretimento das ações da Petrobras na B3. Apenas quando o futuro presidente da companhia, Jean Paul Prates, descartou a volta da intervenção política, na quarta-feira, os papéis da companhia reverteram parcialmente a queda.

RUÍDOS Fernando Haddad foi desautorizado após determinar reoneração dos combustíveis. Ao lado, a ministra do Turismo, Daniela Carneira, com Juracy Prudêncio, ligado a uma milícia no Rio (Crédito:WILTON JUNIOR)

Freio de arrumação

Há apreensão sobre várias iniciativas que já deram errado. Por exemplo, a volta de política de subsídios a setores escolhidos, como o naval e de refinaria, que levaram a rombos bilionários. Ou a insinuação de um novo PAC. A desigualdade só vai diminuir com a integração de fato dos trabalhadores ao mercado de trabalho, e não por meio de projetos irreais. Parece que o presidente está incorrendo no mesmo erro, ao apostar em programas para os mais pobres enquanto enfraquece a possibilidade de a economia se reaquecer.

Divulgação

Há sinais trocados, aliás, em todas as áreas. O clima na Esplanada pesou na última quarta-feira, quando o ministro da Casa Civil, Rui Costa, desautorizou publicamente o titular da Previdência Social, Carlos Lupi, sobre uma revisão das mudanças implementadas em 2019 no sistema previdenciário. “Não há nenhuma proposta sendo analisada ou pensada neste momento para revisão de reforma, seja previdenciária ou outra”, disparou Costa. “[Uma eventual reforma] vai passar pela Casa Civil e é evidente que quem teve 60 milhões de votos é quem decide”, emendou, frisando que a reprimenda foi validada por Lula.

Antes disso, foi uma declaração do ministro da Defesa, José Múcio, que provocou mal-estar. Nomes do núcleo político incomodaram-se depois de ele classificar como “manifestações democráticas” os acampamentos em frente a quartéis em defesa de uma intervenção militar. “Lula afirmou publicamente que não haveria anistia a golpistas. Logo depois, Múcio trata bolsonaristas que chegaram a participar de atos terroristas dessa forma? Não dá”, disse um nome próximo ao presidente. Para aparar arestas e “enquadrar” as vozes dissonantes, o presidente convocou uma reunião ministerial para a sexta-feira, 6.

Haverá muito trabalho para unificar o discurso e diminuir as notícias embaraçosas. Não é possível contar apenas com a narrativa sobre a “herança maldita”. O governo Lula 3.0 estabeleceu entre as prioridades para 2023 o destravamento de obras, embora, segundo reconhece Rui Costa, nem mesmo o alto escalão saiba precisar quantas são. A retomada é vista como uma forma de gerar empregos e impulsionar o crescimento econômico. Com o orçamento apertado, Costa antecipou que a gestão petista está disposta a buscar saídas alternativas, permitindo, por exemplo, que empresas condenadas na Lava Jato que não quitaram valores estabelecidos em acordos de leniência entrem no azul a partir da construção de prédios públicos. Os termos da iniciativa ficarão a cargo da Advocacia-Geral da União, de Jorge Messias (o “Bessias”, famoso na gestão Dilma Rousseff), e da Controladoria-Geral da União, de Vinícius Carvalho.

A ideia não é nova. Na era Bolsonaro, Tarcísio de Freitas atuava como um dos principais fiadores da medida. Membros do Ministério Público Federal, porém, sempre resistiram à ideia. Argumentam que, para viabilizar a proposta, o governo teria de, na prática, criar “licitações exclusivas” para as companhias infratoras, o que configuraria direcionamento da concorrência pública. Petistas graúdos e até membros do TCU têm uma resposta na ponta da língua para a ponderação. “Seria excepcional. Essa é a única forma de o governo receber os valores pendentes, porque todas as empresas estão em recuperação judicial”, pontua um ministro da Corte de Contas, sob reserva. Além de temerária, a iniciativa soa oportunista, já que “apagar” a Lava Jato e reabilitar os responsáveis pelos desvios sempre foi um plano da cúpula petista, caracterizando a operação anticorrupção como a causadora da recessão da última gestão do partido — uma falsidade.

FRENTE AMPLA
Lula desfilou acompanhado do vice, Geraldo Alckmin, durante a posse: demonstração de unidade (Crédito:Ueslei Marcelino)

Governabilidade

Experimentado no governo, Lula pode evitar essa e outras armadilhas. Para garantir governabilidade e apoio no Congresso, o petista buscou construir uma base sólida na Câmara a partir da atração de partidos como PSD, União Brasil e MDB para a Esplanada. A investida, porém, não o livrou de percalços. Entre as siglas, dezenas de parlamentares bolsonaristas ou críticos ao PT asseguram que não atuarão em alinhamento com o Planalto. Líder do governo na Câmara, José Guimarães minimiza o imbróglio e evita falar no número de congressistas vistos como “fiéis”. “Não podemos botar o carro na frente dos bois”, diz. “Nossa tarefa primordial é consolidar essa base e, para isso, diálogo é a palavra-chave. Diálogo, construção coletiva e respeito ao Legislativo”, pontua. O petista acrescenta que buscará entendimento até mesmo com partidos que integraram o tripé
de sustentação de Bolsonaro na campanha: PL, PP e Republicanos.

“Não pode ter preconceito em conversar com ninguém.”
A ampliação da base, no entanto, já gerou a primeira crise no governo. A nova ministra do Turismo, Daniela Carneiro (União Brasil), conhecida como Daniela do Waguinho, virou alvo de críticas com a revelação de que já teve como cabo eleitoral um chefe de milícia. Sua assessoria informou que ela recebeu vários apoios em 2018 e que “isso não significa que compactue com qualquer apoiador que tenha cometido ato ilícito”. A explicação não dirimiu o mal-estar, já que Lula se beneficiou nas eleições com a farta associação de Bolsonaro a milicianos.

“O governo apenas se apega ao legado de Lula. Não diz como fará o Brasil crescer”
Bruno Bolognesi, cientista político

Se o cenário interno inspira preocupações, é no exterior que Lula pretende consolidar a imagem de líder global.
Os primeiros passos sinalizam que ele cumprirá a promessa de rodar o mundo. Depois de conduzir 15 agendas bilaterais logo após a posse, o petista rascunhou o itinerário que pretende cumprir nos primeiros meses de gestão. Na primeira viagem internacional, rumará à Argentina, em 23 de janeiro, para atender à reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. Devido à agenda, Lula sinalizou que entregará a Geraldo Alckmin e a Fernando Haddad a missão de representar o Brasil no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, entre 16 e 20 de janeiro. Em fevereiro, Lula visitará os EUA para um tête-a-tête com seu homólogo, Joe Biden. É um sinal de prestígio. Nos próximos meses, o presidente também pretende pousar na China, maior parceiro comercial do Brasil.

A projeção internacional de Lula, que é muito importante para o País, precisa refletir também avanços domésticos no campo econômico, difíceis de enxergar pelas escolhas feitas até o momento.

DESMOBILIZADOS Acampamento golpista em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, é desmontado na quarta-feira, 4 (Crédito:Leo Bahia)

O presidente tornou-se um líder planetário ao diminuir a desigualdade amparado em uma bem-sucedida gestão que teve no crescimento um dos seus pilares fundamentais. Já se reabilitou após os escândalos da era petista e mostrou ao País que é possível ter um estadista novamente no comando. Mas falta pacificar a sociedade e dirimir as dúvidas da metade do eleitorado que ainda cultiva o sentimento antipetista. A lua de mel será curta neste terceiro mandato, não há tempo a perder.

Colaborou Gabriela Rölke