A literatura latino-americana vive um boom nas mãos de suas escritoras, alheia ao artifício comercial e fundada em méritos artísticos e uma luta histórica.

Às vésperas da Feira Internacional do Livro de Guadalajara (FIL), uma das mais importantes do mundo que abre no sábado (27), sete protagonistas dessa onda elucidam seu esplendor.

Com trajetórias diversas, rejeitam ser um novo “boom latino-americano”. Em vez disso, denunciam a marginalização de muitas de suas predecessoras daquele fenômeno literário e comercial do século XX.

A onda feminista marca, mas não restringe sua criatividade, que em vez disso busca escapar do gueto implícito em rótulos como “literatura feminina”.

Claudia Piñeiro (Argentina, 61 anos), Fernanda Trías (Uruguai, 45) Alejandra Costamagna (Chile, 51), María Fernanda Ampuero (Equador, 45), Karina Pacheco (Peru, 52), Djamila Ribeiro (Brasil, 41) e Guadalupe Nettel (México, 48) conversaram com a AFP sobre os fatores por trás desse impulso, temáticas e desafios.

– Estamos num boom? –

Piñeiro, premiada recentemente em dois festivais de ficção policial na Espanha e presente na FIL, esclarece que o conceito de boom é “geralmente comercial”, enquanto este auge se dá em torno do movimento feminista e da promoção social das mulheres.

“O foco foi colocado em certos discursos, pensamentos, histórias contadas de outros pontos de vista e outras periferias”, diz.

Para Trías, a quem a FIL entregará o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz por seu romance “Mugre Rosa”, o termo boom remete ao fenômeno “masculino” que cobriu Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa e “invisibilizou grandes escritoras daquela época”.

Costamagna enquadra esse brilho em “um momento histórico”, onde várias lutas estão dando reconhecimento às mulheres.

“É até ofensivo pensar que o fato de escritoras latino-americanas publicarem e escreverem seja algo que impressiona (…) Não é verdade. Escrevemos há séculos”, ressalta Ampuero.

“Se fosse um boom, criaria um gueto novamente”, acrescenta a autora do livro de contos “Pelea de Gallos”.

Pacheco prefere falar de um “maravilhoso desembocar de vozes”.

“Estavam ali, contidas por uma barragem, pelo grande preconceito de que uma mulher não escreve tão bem quanto um homem”, diz.

Djamila Ribeiro, filósofa e ensaísta contra a discriminação racial e de gênero, acredita que essa demora respondeu também ao “desinteresse em conhecer autoras que não sejam do eixo norte global”.

Diante do século XXI, escritores e leitores se inclinaram “muito mais para as subjetividades, as minorias, as histórias mais íntimas”, destaca Nettel, prêmio Herralde 2014 pelo romance “Después del Invierno”.

“As mulheres sempre foram as grandes narradoras do cotidiano, da vida interior”, acrescenta a mexicana, representada pela Indent Literary Agency junto com Trías, Costamagna e Pacheco.

– Há temáticas comuns? –

Ampuero, que vive em Madri, descreve uma paleta compartilhada de temas e “explorações” que incluem violência, medo, as vítimas, os perpetradores e terror.

Descartar o casamento ou ter filhos é outra coincidência de autoras “mais nas ruas, mais expostas”. “Usei essa palavra ‘expostas’ com toda a intenção. Ou seja, os perigos de ser mulher”, acrescenta.

Desromantizar a maternidade e enfrentar “os diversos tipos de violência sofridos pelo corpo das mulheres” também é um tema “inevitável porque marca desde o nascimento”, diz Trías.

“Não estão escrevendo temas que normalmente chamariam de femininos, porque isso parece depreciativo (…). As questões das mulheres são questões da humanidade”, continua.

Histórias “um pouco assustadoras” que beiram o fantástico, a loucura e o onírico reúnem o trabalho de amigas e colegas, destaca Nettel.

Para Pacheco, mais leitores estão em busca de “uma literatura que reflita seus universos”. “Mulheres desejosas, assassinas, que param no universo do íntimo”, reflete a autora de “El año del viento”.

Como ponto comum, Piñeiro agrega um “compromisso com a literatura e de dizer o que querem dizer”.

“A riqueza está justamente nesta diversidade de registos e na forma como certas estruturas estagnadas se rompem”, destaca Costamagna, autora de “El sistema del tacto” e da coleção de relatos “Imposible salir de la tierra”.

– Sexismo persiste? –

Ribeiro denuncia que se mantém, enquanto “tudo o que as mulheres produzem é colocado como se fosse literatura feminina” e o masculino não passa de literatura pura.

“É colocado como menor, há uma hierarquia”, aponta.

Os avanços são desiguais. Pacheco lamenta que no Peru não haja tantas resenhas sobre obras escritas por mulheres como na Argentina ou na Espanha.

Mas “não vou chorar por essa desigualdade, nós denunciamos e fazemos dela um desafio”, afirma.

Nettel destaca que foi a terceira mulher em 30 anos a ganhar o prêmio Herralde e, desde então, outras três já o receberam.

Embora haja avanços, Trías, que vive em Bogotá, chama a atenção para que “o que se ganhou não se perca”, pois acreditar que “estamos em pé de igualdade é um pouco ingênuo”.

– Por que lê-las? –

Ampuero destaca a visibilidade das mulheres a partir de movimentos como “Me too”, e a “sede de se ler”.

Para Piñeiro, o fluxo não vai parar, porque as mulheres têm muito para contar e “procuram” fazê-lo.

Trías, por sua vez, refere-se a um mundo que passou a ouvir uma parte da humanidade que estava silenciada.

“Tenho certeza de que, depois de ficar em silêncio por muitos séculos, há coisas interessantes que elas têm a dizer e eu quero ouvi-las”.

Nettel afirma que o principal argumento para a ler as mulheres é que se trata de uma “boa literatura”, capaz de abrir universos e conversas pouco exploradas.

“Para ficar desconfortável, você tem que ler literatura de mulheres”.