Para quem não é familiarizado com a obra de Julio Cortázar, é bom explicar que o uso do termo “fantástico” para descrever suas criações esbarrava em certa oposição do próprio autor. “Quase todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de nome melhor”, afirmou ele a uma revista francesa em 1970. Essa imprecisão não diz respeito ao adjetivo em si, mas à diferença em relação ao “realismo fantástico” que popularizou-se pela América Latina com o sucesso de “Cem Anos de Solidão”, livro de 1967 do colombiano Gabriel García Márquez. Cortázar, na verdade, pertence à escola de Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, argentinos como Jorge Luis Borges.

O lançamento de “Todos os Contos”, edição especial da Companhia das Letras com a coleção completa das narrativas curtas de Cortázar, é uma boa oportunidade para redescobrir esse grande autor latino-americano. Seu estilo, assim como o do mestre Borges e dos seus outros súditos literários, está mais para o surrealismo de Franz Kafka do que para o exotismo de García Márquez. Os contos de Cortázar nascem em um território onírico, sem censura da consciência, metáforas que parecem terem sido criadas por elas mesmas. “Eu sei tanto quanto o leitor”, dizia o escritor. “A grande maioria dos meus contos foi escrita independente da minha vontade, por cima ou por baixo da minha consciência, como se eu não fosse mais que um meio pelo qual passava e se manifestava uma força alheia.”

“O jogo da amarelinha”

Cortázar teve um “nascimento subitamente bélico”, segundo sua própria descrição. Apesar de emanar a cultura argentina por todos os poros, nasceu em Bruxelas, na Bélgica, em 1914. Isso foi, porém, apenas capricho do destino: seus pais, argentinos, haviam se mudado para a Europa para trabalhar na embaixada. No ano seguinte, devido às dificuldades causadas pela Primeira Guerra, a família mudou-se para Zurique, na Suíça. Viveram ainda em Barcelona, na Espanha, antes de retornar a Buenos Aires, cidade que se tornou o principal cenário das obras do autor.

LANÇAMENTO
“Todos os Contos”
Julio Cortázar
Companhia das Letras
Preço: R$ 269

Sua relação com Borges não veio apenas da admiração, mas da gratidão. Em 1946, publicou seu primeiro conto, “Casa Tomada”, na revista Los Anales, dirigida pelo mentor. “Borges deixou sua marca profunda nos escritores de minha geração. Foi ele quem nos mostrou as possibilidades do fantástico. Na Argentina, escrevia-se uma literatura romântica, realista, um pouco vulgar às vezes.” Uma década depois, entregou-se ao outro grande mestre que iluminou sua carreira: o americano Edgar Allan Poe, considerado por ele o “verdadeiro inventor do conto fantástico moderno”. Em contrapartida à inspiração, Cortázar publicou a tradução para o espanhol de toda a obra em prosa de Poe. Sua grande obra-prima, no entanto, veio pouco depois, em 1966: “O Jogo da Amarelinha”, um livro tão inclassificável que já foi definido tanto como romance quanto como “anti-romance”. Apesar de sua linguagem inovadora, a história de amor entre um intelectual argentino no exílio e uma misteriosa uruguaia em Paris, onde o próprio Cortázar viveu, tornou-se um marco da literatura.

Apesar do sucesso de “Amarelinha”, a maioria dos críticos reconhece que o grande Cortázar está, mesmo, em suas narrativas curtas. Seu livro de contos mais famoso, que integra essa nova edição brasileira, foi publicado em 1966. “Todos os Fogos o Fogo” teve tanto destaque que um de seus textos, “A Autoestrada do Sul”, inspirou o cineasta francês Jean-Luc Godard a escrever o roteiro de “Weekend”, lançado um ano depois.

Ao longo da carreira encerrada em 1984, em decorrência de uma leucemia fatal, Cortázar foi um cronista da vida argentina. Ao seu modo de ser fantástico, incorporou também a militância de esquerda, inspirada pela revolução liderada em Cuba por Fidel Castro e Che Guevara, que à época ainda simbolizava uma luta justa pela liberdade. Quem melhor definiu o estilo de seu pupilo, no entanto, foi o próprio Borges, ao citar as características principais da geração de escritores que o tinha como guru: “Nós sonhamos o mundo. Nós o sonhamos resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; mas consentimos, em sua arquitetura, tênues e eternos interstícios de desrazão para saber que é falso”.

Os diários de Ricardo Piglia

Divulgação
Um Dia na Vida” Os Diários de Emilio Renzi Ricardo Piglia            Todavida  Preço: R$ 71

Se Julio Cortázar sonhou a Argentina por meio de suas metáforas surrealistas, seu conterrâneo Ricardo Piglia preferiu se abrigar atrás da figura de um alter-ego. Todos os seus fiéis leitores, no entanto, sempre souberam que “Os Diários de Emilio Renzi” eram reflexões que ele próprio, Piglia, fazia sobre a vida, a política e a literatura. Depois de “Anos de Formação” e “Os Anos Felizes”, chega ao mercado brasileiro “Um Dia na Vida”, último volume da trilogia de diários de Renzi/Piglia. Os três livros dividem com “Respiração Artificial” o topo da carreira do autor, embora ele tenha uma opinião bastante crítica em relação a si mesmo: “nunca vivi nada com tanta intensidade como a certeza do fracasso”. Assim como nos tangos de seu país, apenas o gosto pela tragédia poderia justificar a decisão desse argentino de preferir um pseudônimo em vez de assumir o seu grande talento.