Começou a contagem regressiva: na terça-feira, 1º, a editora Intrínseca libera a primeira tiragem (20 mil exemplares) de A Vida Mentirosa dos Adultos, novo livro da escritora italiana Elena Ferrante. A expectativa é mundial, pois a obra chega também em outros países na mesma data, com exceção da Itália, onde o lançamento aconteceu no ano passado.

Trata-se de um fenômeno – Elena é uma autora que dosa ingredientes literários com tanta precisão a ponto de arrastar atrás de si milhões de leitores apaixonados. Os volumes que integram a tetralogia napolitana, por exemplo, já venderam mais de 11 milhões de cópias ao redor do planeta, além de inspirar uma série na HBO que já tem uma terceira temporada prometida.

Quase todos seus livros se passam em Nápoles, a caótica cidade à sombra do Vesúvio, no sul da Itália. Em uma era pré-pandemia, o bairro operário de Rione Luzzatti, que inspirou o cenário da tetralogia, seu maior sucesso até agora, virou inusitado ponto de peregrinação de turistas-leitores atrás dos rastros de Lila e Lenù, as personagens principais. Ali a violência social e familiar, a falta de perspectiva da classe operária e o papel da mulher, sempre forçada ao segundo plano, ganham rostos e vozes e se tornam universais.

Mas Elena Ferrante não passa de um pseudônimo de alguém misterioso que prefere o anonimato. Diversas especulações já foram levantadas para revelar sua verdadeira identidade, mas nada foi definido. A escritora só concedeu raras entrevistas e sempre por e-mail. O que acontece agora, no lançamento de A Vida Mentirosa dos Adultos: Elena respondeu as questões propostas por 28 tradutores de sua obra em diversos países – e que o Estadão publica com exclusividade.

Helena respondeu a perguntas de seus tradutores e de livreiros em todo o mundo (identificados antes de cada questão). Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista, publicada com exclusividade no Brasil pelo Estadão. A íntegra está em www.estadao.com.br:

Marcello Lino (tradutor para Intrínseca, Brasil)

O dialeto napolitano tem um papel importante nos seus romances. Para muitos personagens, o meio de expressão natural provavelmente seria o dialeto, que, todavia, raramente se manifesta de modo explícito, sendo narrado ou expresso através de um italiano com cadências dialetais. Seria possível dizer, portanto, que, em certos momentos, a senhora também faz um trabalho de tradução, ouvindo as vozes desses personagens em dialeto e transpondo-as para o italiano?

Certamente, mas é uma tradução aborrecida, eu diria descontente. Para me explicar, devo aludir à natureza das personagens narradoras que construí até agora. Nos meus livros, quem narra é a “voz” de uma mulher que tem origens napolitanas, conhece bem o dialeto, é culta, mora há tempos longe de Nápoles e tem sérios motivos para sentir o dialeto napolitano como a língua da violência e da obscenidade. Usei “voz” entre aspas porque não se trata de forma alguma de voz, mas de escrita. Delia, Olga, Leda, Elena, explícita ou implicitamente, narram por escrito e, ao fazê-lo, recorrem a um italiano que é uma espécie de barreira linguística contra a cidade da qual provêm. Em vários graus, elas construíram para si mesmas, digamos, uma língua da fuga, da emancipação, do crescimento, e o fizeram em oposição ao ambiente dialetófono que as formou e atormentou durante a infância e a adolescência. Mas a língua italiana dessas mulheres é frágil. O dialeto, por sua vez, é emotivamente robusto e, nos momentos de crise, se impõe, assume o lugar da língua padrão, chega a irromper com toda a sua dureza. Enfim, quando nos meus livros o italiano cede e assume cadências dialetais, é sinal de que, também na língua, passado e presente confundem-se ansiosa e dolorosamente. Em geral, não imito o dialeto: deixo que seja percebido como a possível erupção de um gêiser.

Király Kinga Júlia (tradutora para Park Kiadó, Hungria)

Nos seus romances anteriores, o processo de legitimação dos interesses de uma mulher e de sua emancipação exigiam pelo menos décadas, se não uma vida inteira. Neste romance, por sua vez, Giovanna consegue superar os condicionamentos e a rotina em um intervalo temporal magnificamente breve. Trata-se de um caso específico ou de uma mudança geracional, ou seja: as aspirações férteis e os esforços empreendidos por nossas mães contribuíram para o nosso empoderamento?

Giovanna está muito distante de Lila e Lenù. Recebeu uma boa educação laica, hiperdemocrática. Seus pais, ambos professores, esperam que a filha se torne uma mulher livre e autônoma, cultíssima e prestigiada. Mas um pequeno evento obstrui o mecanismo predisposto para ela e a menina começa a perceber a si mesma como o fruto estragado de um ambiente mentiroso. Começa, então, desesperadamente, a eliminar de si a própria educação, como se quisesse se reduzir à verdade pura e simples do próprio corpo vivo. Lenù e Lila também tentam arrancar de seus corpos o bairro, mas, enquanto as duas devem arduamente criar instrumentos que as ajudem a se libertar da miséria real e figurada, Giovanna os encontra já prontos em casa e os usa contra o próprio mundo que os proporcionou. A sua revolta, portanto, já vem equipada, é veloz e determinada. Mas desordenar um “eu” bem cultivado é uma empreitada perigosa. Não mudamos nossa forma para assumir outra que pareça mais verdadeira sem corrermos o risco de não nos encontrar mais.

Jiwoo Kim (tradutora para Hanglisa Publishing, Coreia)

Em relação às personagens femininas, os “homens ferrantianos” parecem ser bastante simples ou monótonos. Existe algum personagem masculino que a senhora considera uma figura mais positiva em relação aos outros ou ao qual se sente especialmente afeiçoada?

Enzo. Gosto dos homens cuja força é exercida ajudando-nos, com discrição, a viver. Gosto de homens que não usam palavras demais, sem pieguices, sem esperar recompensas. A verdadeira compreensão de uma mulher me parece o mais elevado exercício da inteligência e da capacidade masculina de amar. Coisa rara. Não quero falar aqui dos homens toscos, violentos, cuja última encarnação são os agressores vulgares nas mídias sociais ou na TV. Acho mais útil falar dos cultos, dos companheiros de trabalho e de estudo. A maioria continua a nos tratar como animais graciosos e só nos dão algum crédito quando querem brincar um pouco conosco. Uma minoria aprendeu superficialmente um formulário de “amigos das mulheres” e quer explicar o que devemos fazer para nos salvar, mas, assim que esclarecemos que precisamos nos salvar sozinhas, o verniz da civilização começa a rachar e surge o velho homenzinho insuportável. Não, sob todos esses aspectos, nossos viris educadores devem ser reeducados. Por ora, confio apenas em Enzo, o companheiro paciente de Lila. Claro, pode acontecer que até esse tipo de homem a certa altura se canse e vá embora, mas pelo menos deixa uma bela lembrança.

Ana Badurina (tradutora para Profil, Croácia)

Em todos os seus romances, as relações entre mulheres e homens são muito frágeis, em sua maioria infelizes, ao passo que as experiências realmente formativas, em várias direções, são aquelas vivenciadas entre mulheres. Seria do seu interesse aprofundar, tanto como escritora quanto como leitora, uma narrativa na qual fosse possível uma relação relativamente “feliz” entre um homem e uma mulher? Ou julga que uma história do gênero dificilmente pode resultar convincente em âmbito literário?

Muitas vezes, o que não resulta convincente na literatura é o resultado de uma leitura edificante da realidade. Não me coloco entre aqueles que julgam que a felicidade começa quando a história acaba (penso na fórmula: “e viveram felizes para sempre”). Certamente é possível contar a história de um casal feliz, conheci vários. Uma vez, até esbocei uma história na qual uma mulher muito infeliz decidia realizar uma investigação, exatamente como em um livro policial, sobre a vida conjugal feliz de seus pais idosos. Mas não quero entediá-la aqui com o desenvolvimento dessa história, Ana. Digo apenas que a senhora sintetizou muito bem aquela pequena história usando a expressão “relação relativamente ‘feliz’ entre um homem e uma mulher”. A felicidade, a meu ver, só pode ser narrada se desenvolve aquele “relativamente” e se expõe os motivos daquelas aspas que a senhora colocou na palavra “feliz”.

Dr Chen Ying (tradutora para Shangai99, China)

Nápoles é uma cidade irritante, para o bem e para o mal, e é sempre a protagonista dos seus romances. Em A vida mentirosa dos adultos, essa cidade foi dividida em dois mundos: bairro alto e bairro baixo. No seu novo romance, a senhora tentou conectar esses dois microcosmos?

Sempre fiquei fascinada com a oposição entre alto e baixo. Com algumas simplificações, eu poderia dizer que tendo a construir minhas histórias em torno dos verbos subir, descer, precipitar, escalar. A senhora notou que, no meu último livro, o nexo entre alto e baixo é central. Foi a toponímia da cidade que me encorajou a seguir nessa direção. Em Nápoles, existe realmente uma área em cima de uma colina denominada Bairro Alto. Para chegar até lá, é necessário subir uma rua estreita que se chama San Giacomo dei Capri. Achei interessante que Andrea, o pai de Giovanna, morasse com a família naquele bairro e procurasse apagar, também com o endereço da própria casa, suas origens “baixas”. É a filha, Giovanna, que, no decorrer de sua rebelião adolescente, descobre a artificialidade das fronteiras que o pai quis traçar. A garota infringe a ordem paterna e arrasta o alto para o baixo e o baixo para o alto, fazendo de si mesma o lugar de uma amálgama brusca de elementos antagônicos, o espaço em que belo e feio, novo e velho, fineza e grosseria se misturam, rindo da ânsia de distinção do pai neoaculturado.

Stefanie Hetze (livreira e proprietária da livraria Dante Connection, Berlim, Alemanha)

Para Lila e Elena, a experiência da leitura de Mulherzinhas assume grande importância. Quais (outras) figuras literárias a fascinaram e marcaram profundamente na adolescência?

Para responder, eu faria uma lista longa e provavelmente maçante. Digamos que eu devorava romances em que as personagens femininas tinham vidas desaventuradas de uma maneira injusta e feroz, cometiam adultério e outras infrações, viam fantasmas. Entre os doze e os dezesseis anos, procurei avidamente todos os livros que tinham nomes de mulheres no título: Moll Flanders, Jane Eyre, Tess dos D’Ubervilles, Effi Briest, Madame Bovary, Anna Karenina. Mas o livro que li e reli de maneira obsessiva foi O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Ainda hoje é um livro extraordinário pela maneira como narra o amor misturando bons e péssimos sentimentos, sem interrupção. Catherine é um personagem que, de tempos em tempos, deve ser revisitado. Serve, quando escrevemos, para evitar o perigo de figuras femininas adocicadas.

Monica Lindkvist (livreira, Akademibokhandeln, Suécia)

A senhora se identifica com algum dos personagens principais da Tetralogia Napolitana ou deste novo romance?

Respondo com um lugar-comum: todos os personagens, até os masculinos, têm algo meu. De resto, esse é um processo obrigatório. Embora conheçamos bastante o corpo dos outros, a única vida interior que conhecemos de fato é a nossa. Portanto, é relativamente fácil aprender a olhar e captar um gesto significativo, uma careta, as características de um modo de andar, de falar, um olhar eloquente. Em contrapartida, é impossível nos transportarmos para a cabeça de outra pessoa: quem escreve corre sempre o risco das simplificações dos manuais de psicologia, e isso é deprimente. Temos apenas a nossa cabeça, e extrair dela um pouco de verdade para dar vida a ficções é um trabalho árduo. Lá dentro, há o vozerio de uma multidão que soma tudo a tudo entre choques e confusão. Por isso, no fim das contas, a vida interior dos outros é o fruto literário sempre insuficiente (linearidade demais, coesão demais, lógica demais) de uma autoanálise extenuante ajudada por uma imaginação vívida. Mas a senhora me pediu para indicar um personagem com o qual me identifico e, como determinei de antemão que daria respostas talvez exaustivas, direi que, neste momento, gosto de alguns traços da tia Vittoria de A vida mentirosa dos adultos. Não sou eu, mas com certeza fico feliz de ter sido a sua autora.

Ivo Yonkov (tradutor) e Dessi Dimitrova (livreira para Colibri, Bulgária)

1. Por que a senhora continua a voltar a um passado doloroso? Para a senhora, escrever é, acima de tudo, uma forma de autoterapia? 2. O que acha da literatura estudada nas escolas italianas? Acha que reflete as dinâmicas do mundo em que vivemos? Que valores proclama? E esses valores também são compartilhados pela senhora?

Não, nunca considerei escrever uma forma de terapia. A escrita, para mim, é algo totalmente diferente: é girar a faca na ferida, algo que pode causar muita dor. Escrevo como aquelas pessoas que viajam de avião o tempo todo por necessidade, mas têm medo de não sobreviver, sofrem durante todo o voo e, quando aterrissam, ficam felizes mesmo estando reduzidas a um fiapo. Quanto à escola, sei pouco de como ela funciona hoje. A que eu frequentei transformava leituras, que achei maravilhosas quando adulta, em exercícios chatíssimos que deviam ganhar uma nota. Aquela escola ensinava literatura eliminando o prazer da imaginação e da identificação. Quando removemos a energia de uma frase para brincar com um adjetivo ou uma figura de linguagem, deixamos na página apenas combinações alfabéticas macilentas e transformamos os jovens, na melhor das hipóteses, em requintados vendedores de vento.

Fe Fernandez Villaret (livreira, L’Espolsada Llibres, Corro´ d’Avall, Barcelona, Catalunha)

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que achei extremamente prazerosa a leitura dos quatro livros da Tetralogia Napolitana. Como livreira, indiqueio-os para todo mundo, mas foram lidos principalmente por mulheres porque, desde o início, foram classificados como leitura “para mulheres”. O olhar dos seus livros é feminino, mas isso não significa que eles sejam exclusivamente para mulheres, pelo contrário. Na sua opinião, por que os livros que olham para o mundo com um olhar feminino não interessam aos homens? Durante anos, a vida, a história e tudo o que acontecia nos foram contados por eles. Agradeço por sua contribuição para tornar o universo feminino mais rico e plural.

O que dizer? Os homens, até os muito cultos, muitas vezes sequer tentam ler os nossos livros. Eles os consideram, como a senhora destaca, “para mulheres” e, com essa fórmula, não apenas parecem proteger sua virilidade de qualquer possível degradação, como, sobretudo, nos negam a dádiva da universalidade, que atribuem apenas a si mesmos. Eles escrevem livros para homens e mulheres, nós, em contrapartida, conseguimos escrever apenas para mulheres. É um dos vários sinais de como eles continuam a nos considerar seres humanos de nível inferior. E, às vezes, nós mesmas parecemos concordar com eles, falta pouco para que voltemos a exclamar como a Ifigênia de Eurípedes: “Melhor que viva um homem do que mil mulheres”. Fomos educadas com a ideia de que uma pessoa do sexo masculino tem, entre suas várias e maravilhosas prerrogativas, aquela de resumir em si o mundo todo. Um homem, quando produz obras grandes, pequenas, minúsculas, se dirige com naturalidade ao gênero humano, aos marcianos, aos venusianos, se sente preparado para o possível e o impossível. A nós foi dito que não nascemos para isso. A inteligência deles, o talento deles são méritos. Nossa inteligência, nosso talento são defeitos. Cito um exemplo: o extraordinário Baudelaire, ao qual todos e todas nós devemos muito, escrevia que a beleza feminina dura mais se não for acompanhada pela inteligência e, com seu jeito provocador, destacava que quem se apaixonava por uma mulher inteligente era pederasta. As coisas mudam, é claro. Estão mudando, mas, sobretudo, de maneira profunda, estão mudando devagar demais. Ainda hoje, quando afirmo que a grande literatura não é universal, apenas grande literatura masculina, causo incômodo, pareço um pouco grosseira. Mas é verdade.

Malgorzata Zawieska (livreira, KOREKTY, Varsóvia, Polônia)

Em seus livros, a senhora aborda uma questão importante: a emancipação da mulher através da vida profissional. Como considera os possíveis efeitos do coronavírus na situação feminina? Acha que agravará as disparidades econômicas, determinando retrocessos em relação a algumas conquistas no caminho da emancipação? Acredita que esse poderia ser um tema interessante para uma escritora?

Ainda estou sob o efeito do medo e desnorteada pela facilidade com que as já péssimas condições de vida dos mais fracos do planeta pioraram em poucas semanas. Não me interesso especialmente pelo vírus. É a fragilidade do sistema que me assustou, tanto que tenho dificuldade para me explicar. Quero dizer que tudo se redimensionou bruscamente. A obediência foi parar no topo da hierarquia de valores em um intervalo extraordinariamente breve. E as mulheres receberam mais ordens do que de costume, encarregadas, como tradicionalmente são, de deixar de lado a si mesmas para se ocupar da materialíssima sobrevivência da família: nutrir, vigiar, cuidar, fechar, fechar-se e, enquanto isso, sentir-se culpadas por tudo, como se, até aquele momento, tivessem tido pretensões demais. Nesse cenário, parece inevitável o retrocesso para enfrentar rebeliões primárias: alimento, água, um teto, remédios. Sim, acho que mais do que narrar a difusão da pandemia, deveria ser narrada a difusão do medo que muda e tira sentido das reivindicações elevadas, de ambições refinadas, enfim, de todo aquele “fazer” que fervilha quando o sistema econômico-social-cultural se finge sólido. Mas, repito, preciso pensar. Por enquanto, o problema é como fazer para que a questão feminina permaneça central. É necessário que ela seja sentida como não menos explosiva do que, por exemplo, a condição dos afro-americanos nos Estados Unidos ou as migrações entre guerras e miséria.

Ann Goldstein (tradutora para Europa Editions, Estados Unidos)

Como a senhora trabalha? Faz muitas correções? E de que tipo? Considera-se uma boa editora de si mesma? Muda com frequência palavras ou o tipo de linguagem?

O ponto decisivo para mim é chegar, partindo de absolutamente nada, a um esboço denso, caótico. O trabalho em cima do esboço é extenuante. Gasto muita energia para obter um texto com um início, um fim e repleto de vitalidade. É uma aproximação lenta, como à espreita de uma forma de vida sem uma fisionomia definida. Posso avançar sem parar, às vezes, até mesmo sem nunca reler, mas é raro. Geralmente avanço poucas linhas a cada dia, compondo-as e recompondo-as. Muitas vezes, perco o interesse e ponho tudo de lado. Mas esse é um caso muito sofrido e prefiro não abordá-lo aqui. Quero dizer, cara Ann, que, somente quando esse esforço preliminar teve um bom resultado, começa para mim o verdadeiro prazer de escrever. Recomeço desde o início. Apago trechos inteiros, reescrevo muito, mudo o percurso e até mesmo a natureza dos personagens, acrescento trechos que me ocorrem e me parecem necessários só naquele momento, quando já existe um texto, desenvolvo episódios que haviam sido apenas mencionados, modifico a posição de alguns acontecimentos, muitas vezes recupero páginas descartadas, primeiras versões mais longas, talvez mais feias, porém mais imediatas. É um trabalho que faço sozinha, não o dividiria com ninguém. Em contrapartida, a certa altura, preciso de leitores muito atentos, mas que devem prestar atenção somente nas minhas distrações: cronologia errada, repetições, formulações incompreensíveis. Mas tenho medo das sugestões que tendem a normalizar o texto, do tipo: não é assim que se diz, está faltando pontuação, essa palavra não existe, é uma formulação imprópria, é uma solução antipática, assim fica mais bonito. Mais bonito? A edição perigosa é a que zela pelo respeito do cânone estético vigente e também a que favorece anomalias compatíveis com o gosto difuso. Se um editor diz “no seu texto há coisas boas, mas precisamos trabalhar nisso”, é melhor retirar o manuscrito. Aquela primeira pessoa do plural é alarmante.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.