Ativistas pedem que Pequim proteja centenas de milhares de mulheres que fugiram para seu território. Muitas acabam sendo alvo de traficantes de pessoas e forçadas trabalhar como escravas sexuais.Em torno de meio milhão de mulheres e meninas norte-coreanas, de até 12 anos, vivem clandestinamente na região de fronteira entre a Coreia do Norte e a China, segundo um relatório do escritório internacional de advocacia dos direitos humanos Global Rights Compliance. Os ativistas alertam que, após deixarem seu país de origem, elas correm grave risco de exploração.
Trabalhando em parceria com várias ONGs e organizações de direitos humanos para reunir provas e testemunhos de refugiados, a Global Rights Compliance encontrou mais de 4.340 casos documentados de tráfico feminino da Coreia do Norte para a China na última década, e pelo menos 80 registros de abusos dos direitos humanos.
Jornada arriscada
Sofia Evangelou, principal consultora legal da Global Rights Compliance para direitos humanos na Coreia do Norte, afirmou ser difícil ler muitos esses relatos. "Li alguns testemunhos e fiquei estarrecida e muito comovida com o que essas mulheres passaram."
"Muitas dizem que, mesmo depois de chegarem em segurança à Coreia do Sul, sofrem sentimentos de ansiedade, vergonha, e transtornos de estresse pós-traumático. Cada uma teve uma experiência diferente, e lida com ela à seu próprio modo, mas há um claro padrão de mulheres com danos físicos, emocionais e psicológicos em decorrência disso tudo."
O relatório afirma que as refugiadas não estão seguras mesmo após completarem a perigosa jornada até a fronteira altamente fortificada de seu país com a China, onde Pyongyang introduziu ordem de atirar para matar qualquer suspeito de tentar deixar o país.
Elas são forçadas a se esconderem depois de chegaram à assim chamada "Zona Vermelha" no leste da China, onde as autoridades locais caçam desertores, para enviá-los de volta à Coreia do Norte.
Os relatos sugerem que as que são apanhadas pela primeira vez acabam cumprindo pena numa das brutais prisões norte-coreanas. Para as reincidentes, a punição pode ser bem mais severa, podendo redundar em execução.
Os lockdowns impostos no lado chinês da fronteira para conter as transmissões de covid-19 tornaram a situação ainda mais arriscada. De modo geral, os desertores possuem pouco dinheiro, não têm acesso a alimentos e não conseguem continuar suas viagens até um terceiro país seguro.
Informações coletadas dos desertores por grupos como o Centro de Banco de Dados dos Direitos Humanos na Coreia do Norte e o Transitional Justice Working Group indicam que até 80% das mulheres e meninas norte-coreanas refugiadas caem nas mãos do tráfico humano e são vendidas para o comércio sexual. Segundo estimativas, este gera mais de 105 milhões de dólares (R$ 533 milhões) por ano para redes de crime organizado dos dois lados da fronteira.
"Buraco negro" de informações
Dentro da "Zona Vermelha", segundo relatos, mulheres e meninas são frequentemente submetidas a estupros sistemáticos, escravidão sexual, casamentos forçados, gravidez indesejada, trabalhos forçados e tráfico sexual cibernético.
O relatório denuncia que esse tipo de tratamento acabou sendo normalizado na região, com as mulheres espancadas em público e vendidas até por umas poucas centenas de dólares.
"Fui vendida para um chinês que vive em Yanbiab", relatou uma delas em seu testemunho. "Vivemos juntos por um ano, mas não podíamos ter filhos, por isso ele me batia. Ele me chutava muito na cabeça."
Uma mulher que foi pega e enviada para uma prisão na Coreia do Norte viu uma colega que escondia a gravidez desmaiar quando trabalhava coletando pedras de um rio, e se afogar.
Quando os guardas perceberam que ela estava grávida, arrancaram as roupas de todas as outras detentas para verificar se também estariam escondendo uma gestação. Segundo os relatos colhidos pelos ativistas, passou-se a realizar abortos forçados na prisão.
"Existe atualmente um buraco negro de informações em torno da 'Zona Vermelha' chinesa, o que significa que há mais mulheres e meninas norte-coreanas vitimadas pela indústria da escravidão do sexo", disse Evangelou.
"A situação atual deixa as meninas expostas à crua realidade de que, ou alcançam a liberdade, ou são vendidas para uma vida de abusos sexuais, mentais, escravidão, trabalhos forçados." A advogada denuncia uma "pandemia de silêncio internacional" em relação ao tema.
"A escravidão sexual de mulheres e meninas não vai acabar até que seja mobilizado um esforço internacional coordenado. A comunidade internacional não pode mais fazer vista grossa para as atrocidades cometidas contra mulheres e crianças em fuga por suas vidas, e, em demasiados casos, contra seus bebês ainda não nascidos."
Seul contra as violações do Norte
O governo da Coreia do Sul parece se interessar cada vez mais pelas violações dos direitos humanos na Coreia do Norte, e em responsabilizar os líderes em Pyongyang.
Segundo Park Jung-won, professor de direito internacional da Universidade de Dankook, o governo sul-coreano anterior, sob o presidente Moo Jae-in, teria optado pelo "silêncio sobre a situação dos abusos dos direitos humanos no Norte", mas as coisas estariam mudando na presidência de Yoon Suk-yeol.
"Houve uma mudança significativa na atitude do governo. A Coreia do Sul apoiou [em março] uma resolução da ONU sobre os direitos humanos na Coreia do Norte, pela primeira vez em cinco anos", afirma o professor. Ele destaca que Yoon nomeou um novo embaixador para essa finalidade.
"Isso é uma mudança total, e algo muito positivo para os direitos humanos no Norte", comenta Park. "Tenho esperanças de que este governo continuará a impelir essa tema, levantando questões na ONU e em outros fóruns internacionais, a fim de aumentar a pressão sobre Pyongyang."
Essa pressão de Seul deverá "permitir que a comunidade internacional adote ações mais concretas para reagir a esses terríveis abusos de direitos humanos no Norte e nessa perigosíssima zona de fronteira."