A França foi o país que inventou a enciclopédia e incentivou o mundo a adotar a democracia através de seus ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” no século XVIII. Com o movimento estudantil de maio de 1968 veio outro lema: “É proibido proibir”. Cinema, literatura e personalidades do país cultivaram na cultura popular a ideia de que a vida privada, a sexualidade e, mais uma vez, a liberdade, eram direitos inalienáveis do indivíduo. Contudo, com o estrondo do #MeToo, movimento iniciado nos Estados Unidos após denúncias de que o produtor de Hollywood Harvey Weinstein teria abusado de centenas de mulheres famosas, a nação de Marques de Sade praticamente se calou. Com o nome #balancetonporc, algo que em tradução literal seria “balance seu porco”, mas com o significado de “denuncie seu abusador”, as acusações vieram, em sua maioria, de pessoas anônimas. Porém, 100 atrizes, dentre elas a consagrada Catherine Deneuve, publicaram um manifesto com uma crítica ao #MeToo que irritou as feministas americanas: “Um flerte insistente ou desajeitado não é um estupro, nem a galanteria é uma agressão machista”.

“Estupro é um crime. Mas um flerte insistente ou desajeitado, não. Nem a galanteria é uma provocação machista” Catherine Deneuve, atriz (Crédito:Arthur Mola)

Entretanto, parece que as coisas tomam um novo rumo. Recentemente, o país passou por três grandes escândalos que trouxeram toda a discussão sobre consentimento e relações de poder novamente à tona: no final de janeiro, a filha mais velha do ator Richard Berry, Coline Berry, acusou o pai de incesto. A jurista Camille Kouchner publicou um livro no qual acusa seu padrasto, o reconhecido cientista político Olivier Duhamel, de ter agredido sexualmente seu irmão gêmeo quando ele tinha apenas 14 anos. Há outro evento que também tem provocado um intenso debate sobre a visão do país em relação ao sexo com menores de idade: o caso envolvendo o escritor Gabriel Matzneff, que sempre escreveu publicamente sobre seus relacionamentos com adolescentes sem nenhuma represália. Ele foi formalmente acusado de pedofilia após sua ex-editora, Vanessa Springora, revelar que teve um relacionamento com o escritor quando ela tinha 14 anos e ele, 50. O escritor, hoje com 84 anos, sempre foi bastante celebrado e premiado. Uma de suas obras é “Os menores de 16 anos”, título de um antigo livro que não abre espaço para ambiguidades.

O livro de Vanessa Springora, Le consentement (O Consentimento, ainda sem previsão de publicação no Brasil), é o relato de Vanessa, que afirma ter sido seduzida pelo famoso escritor. Ela foi apresentada a Matzneff pela própria mãe e acabou se apaixonando. Só descobriu o que estava acontecendo quando leu textos nos quais o autor descrevia com riqueza de detalhes as relações dele com diversas meninas e meninos, incluíndo as crianças e adolescentes que ele teria abusado em turnês sexuais pelo sudeste da Ásia. Le consentement se esgotou das livrarias e as obras de Matzneff acabaram banidas das prateleiras. Antes da denúncia de Vanessa, ele era amplamente elogiado pela crítica e pela imprensa, tendo recebido em 2013 o prêmio Renaudot, um dos mais importantes em literatura francófona. Na França é ilegal que adultos tenham relações com menores de 15 anos.

Divulgação

Livro das revelações

Para o psicanalista e professor da Unicamp Paulo Cecarelli, que fez seu pós-doutorado sobre sexualidade em Paris, há na Europa uma relação pouco sadia com o sexo, algo que teria origem nas religiões judaico-cristãs. “Os países que vêm dessa tradição veem o sexo com muita culpa e pecado e isso pode acabar saindo do controle”, afirma. Ele também afirma que na França o movimento contra o “politicamente correto” é mais forte, pois há certa resistência às regras. Isso pode ser visto em toda a cultura do país, que vai das caricaturas do jornal Charlie Hebdo até os filmes repletos de cenas de sexo explícito do diretor franco-argentino Gaspar Noé.

Já o livro La familia grande, lançado no começo de janeiro por Camille Kouchner, filha do ex-ministro Bernard Kouchner, revela os abusos que seu irmão gêmeo sofreu quando adolescente por parte de seu padrasto, o cientista político Olivier Duahmel. A obra gerou uma enxurrada de depoimentos na internet com a hashtag em francês #Inceste. Milhares de pessoas começaram a apontar o dedo para os membros de suas famílias e a dizer que sim, foram vítimas de abuso. O ator Richard Berry, último homem proeminete a ser acusado de incesto pela filha, nega as acusações. Já ela, após fazer a denúncia na polícia, contou em seu Instagram como seu pai a “beijou com a língua” e a fez participar “de jogos sexuais em um contexto evidente de violência machista”. A reação vigorosa de Camille é uma novidade. Mas será que essa mudança de comportamento veio mesmo para ficar?

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