A Praça Roosevelt, talvez, seja o último lugar de São Paulo para abrigar um escândalo causado por um beijo entre dois rapazes. Se a peça de Nelson Rodrigues não previa as discussões de gênero atuais, O Beijo no Asfalto mantém-se em alta velocidade para abordar os bastidores da polícia, da mídia e da moral seletiva de “gente de bem.”

Em cartaz a partir deste sábado, 12, a peça ganha versão urbana com o núcleo do Teatro Pequeno Ato, que intervém nas escadarias da praça, logo ao lado do posto da Guarda Municipal Metropolitana, em frente à Rua Augusta. Mas, antes mesmo que fosse possível realizar ensaios no local, o diretor Pedro Granato lembra que levou quatro meses para conseguir a autorização de estrear no local. “Já havia uma proibição de realizar eventos e atrações na praça”, conta o diretor. “Com o tempo, alteramos o projeto inicial porque, entre outros requisitos, a peça não poderia ter cenários nem equipamentos fixos. Mas o que querem mesmo é fechar a praça.”

O diretor se refere a uma proposta da associação de moradores local que circula desde o ano passado com um projeto para cercar a área pública da Praça Roosevelt e determinar horários de abertura e fechamento. Entre as reclamações dos moradores de prédios da região, desde a reforma da praça em 2014, estão o barulho dos bares na madrugada e o dos skatistas. “É nessa onda que queremos levar o teatro para a rua contra esse sentimento de ódio que quer impedir as pessoas de usufruírem do espaço público”, diz Granato.

Para tais conflitos de convivência, Nelson tem muito a dizer. Na peça de 1960 com a saudosa montagem do Teatro dos Sete, com Fernanda Montenegro e dirigida por Gianni Ratto, um homem é atropelado e implora, como um último pedido, que seja beijado. Por sorte, ou azar, é Arandir, homem casado com Selminha, quem se despede do moribundo. A próxima hora e meia de peça desvela a sagacidade do repórter Amado Ribeiro com o delegado Cunha – nome estranho de ouvir nos tempos de hoje – para acuar Arandir e sua família. “Apesar de o beijo entre dois homens não se tratar de um escândalo para a maioria de nós, ainda mais aqui na praça, existe um movimento intolerante e reacionário de uma cultura de linchamento, principalmente nas redes sociais”, afirma Granato.

E o histórico da praça revela esse movimento. Se antes da reforma o local era palco de tráfico e de assaltos, após a revitalização, as pessoas que se achegaram, inclusive para morar nos prédios da região, passaram a reclamar dos frutos da revitalização. “Para nós, artistas, a praça sempre foi um espaço garantido, mas estamos vendo que não é bem assim”, diz o diretor.

Nessa ocupação teatral, o grande objetivo é que a peça converse com os passantes, coisa vista nos ensaios antes da estreia. “Todo dia acontece uma coisa nova. As pessoas interagem cada uma ao seu modo”, conta Granato. E, para além do escândalo midiático que destrói a reputação de Arandir, a família tradicional brasileira, sempre no alvo do dramaturgo, ajuda a coroar a tragédia carioca no trânsito barulhento de São Paulo. Nela, a jovem Dália morre de amores pelo cunhado, mas sofre com a indiferença do pai. Esse, da classe de gente de bem, sustenta um sentimento por Selminha que vai além da relação pai-filha. “São figuras que perderam a honestidade, que acusam os atos públicos alheios, mas guardam em segredo suas próprias obsessões.”

BEIJO NO ASFALTO

Praça Roosevelt. Acesso Rua Augusta. Sáb., dom., 16h. Estreia hoje, 12. Grátis. Até 3/9

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.