O embate entre cientistas e militares no Brasil teve um novo round nessa semana, quando o Ministério da Defesa anunciou que gastará R$ 145 milhões para comprar um satélite que, na prática, fará o mesmo trabalho que hoje já é feito por outro órgão federal, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). E o pior, não há nenhuma informação sobre qualquer licitação para essa compra. Mesmo sendo considerado um microssatélite, o sistema tem um custo avaliado em quase 48 vezes acima da verba prevista para o orçamento deste ano, de R$ 3,03 milhões, para projetos de monitoramento da terra e de risco de incêndios. O governo se defende, alegando que o novo sistema, apesar de semelhante, amplia o monitoramento da floresta na Amazônia porque consegue ver através das nuvens com sistemas de radar, não havendo sobreposições de funções e sim complementaridade dos serviços. Mas a verdade é que existe um esforço do governo para desmantelar o Inpe.

“Não faltam dados no Inpe e seria mais útil aportar recursos para implementar serviços de fiscalização” Ricardo Galvão, físico e ex-diretor do Inpe (Crédito:Divulgação)

Por traz de toda essa história, está a longa e difícil disputa travada desde 2012 entre programas militares, cujo foco é apenas a segurança das fronteiras, e os programas civis liderados pelo Inpe, que visavam também acompanhar o clima e as ameaças à floresta amazônica. Os dois grupos sempre se enfrentaram para conseguir recursos para tocar seus projetos até que, em 2018, o ex-presidente Michel Temer resolveu criar um comitê formado por representantes dos dois lados. Os estudos avançaram tanto que acabaram reformulando o Programa Espacial Brasileiro. A proposta incluía um Projeto de Lei (PL) que criaria o Conselho Nacional do Espaço, reunindo em sua equipe tanto militares como cientistas, sob a coordenação da Casa Civil, contemplando necessidades de segurança e de monitoramento climático e florestal.

No entanto, tudo ruiu quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente e os militares assumiram o protagonismo em vários cenários. Até mesmo a Agência Espacial Brasileira (AEB) foi modificada e o orçamento do Inpe foi zerado. Paralelamente, o Ministério da Ciência e Tecnologia também foi tomado por militares e tudo travou. Começaram aí as ações para implementar as propostas das Forças Armadas, tirando os cientistas do processo. Isso também implicou no cancelamento de um acordo de colaboração para desenvolvimento tecnológico entre Brasil-China de mais de 30 anos.

A luta sem tréguas entre os dois grupos culminou com o afastamento do diretor do Inpe, Ricardo Galvão, no ano passado, porque ele rebatia de forma veemente as críticas de Bolsonaro de que as métricas de desmatamento do instituto “não coincidiam com a verdade”. Eleito um dos dez cientistas mais importantes pela revista Nature, o físico diz que a informação dada pelo vice-presidente general Hamilton Mourão de complementaridade dos serviços não é bem assim. Isso porque o satélite que será comprado trabalha na chamada Banda X, que atua numa faixa de freqüência privativa para comunicação militar e que não é apropriada para monitoramento de florestas por não conseguir distinguir árvores no chão. Já o satélite do Inpe atua numa faixa mais baixa da Banda L que consegue detectar melhor a situação na mata.

Briga sem fim

“Além disso, esse novo satélite tem um tempo de rastreio maior, repassando cada região em 60 dias, enquanto o do Inpe consegue repassar a cada dois dias”, explica. Quanto a conseguir ver melhor, Galvão afirma que hoje o Brasil tem dois satélites ópticos, que não têm o radar que os militares querem, mas que as imagens eram complementadas por satélites da União Européia, graças a um acordo que colocou o Inpe no hub de satélites sentinelas. “Não faltam dados e eles vêm de graça, ou seja, seria mais útil aportar recursos para implementar serviços de fiscalização, mas como o Ibama foi desmontado o Inpe também será”, declara.

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Hoje, o principal sistema de satélites do Inpe é o Deter, de Detecção de Desmatamento em Tempo Real, criado em 2004. A aquisição de um satélite, sem a possibilidade de se desenvolver novas tecnologias a partir dele é considerada por ambientalistas e cientistas como a compra apenas de um produto isolado, sem se saber como operacionalizar os recursos e colocar toda a inteligência computacional no sistema para processar e entender os dados. Para os cientistas, os militares estão tão desesperados para ter o controle da narrativa sobre o desmatamento no País que farão qualquer coisa, mas não terão a credibilidade necessária, o que criaria uma espécie de “cloroquina da Amazônia”. Porém, enquanto o governo queima dinheiro para fazer algo que já é feito, o aumento dos incêndios no País ao longo de 2020 chegou a superar em 30% o volume registrado no ano passado, segundo dados do Inpe.

FOGO NA MATA Enquanto a briga continua, os incêndios avançam não só na Amazônia como no Pantanal:
futuro ameaçado (Crédito: Ueslei Marcelino)

Nota enviada pelo Ministério da Defesa

Prezado Diretor de Redação,
O Ministério da Defesa (MD) esclarece que a matéria “Escândalo na Defesa”, publicada nesta sexta-feira (28/8), no site da Revista Istoé, está absolutamente equivocada, a começar pela própria manchete, e não corresponde à verdade.
A matéria presta um duplo desserviço ao afirmar que o “ministério anuncia compra de satélite, sem licitação, que faz o mesmo trabalho do Inpe”. Na realidade, ignora, completamente, a nota de esclarecimento que a Defesa divulgou, na última quinta-feira (24/8), confirmando justamente o contrário: a licitação está em andamento e os satélites do CENSIPAM e do INPE são complementares.
Diferentemente do que diz a matéria (“não há nenhuma informação sobre qualquer licitação para essa compra”), a pasta veio a público, na semana passada, garantindo todos os requisitos legais estão sendo cumpridos e a aquisição do satélite está sendo realizada por meio de concorrência internacional. O processo licitatório ainda está em andamento e deverá ser concluído até o fim de 2020.
Ao contrário do que afirma a matéria, não haverá superposição entre os satélites do CENSIPAM e do INPE, haverá complementaridade. Desde 2016, o CENSIPAM desenvolve o projeto SipamSAR. A tecnologia SAR é capaz de enxergar o terreno, mesmo que ele esteja sob nuvens. Dessa forma, mesmo na época de fortes chuvas na Amazônia, que duram cerca de oito meses, o radar consegue melhor monitoramento. O SipamSAR nasceu em complemento ao sistema DETER do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), no período de maior cobertura de nuvens, já que o DETER utiliza imagens de satélites óticos.
O CENSIPAM (Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia) foi criado em 2002, justamente para promover a proteção e o desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal. A fim de cumprir sua missão, o CENSIPAM utiliza dados gerados por meio de uma infraestrutura tecnológica, composta por sensoriamento remoto, radares meteorológicos e coleta de dados na região amazônica.
Também, ao contrário do que apresenta a matéria, militares e cientista não estão “batendo cabeça”. Esta semana, por exemplo, a aquisição do satélite foi debatida durante reunião do Conselho do Sistema de Proteção da Amazônia (CONSIPAM), com todos os ministérios integrantes. Estiveram presentes os secretários-executivos ou representantes dos ministérios da Defesa (MD); Relações Exteriores; Meio Ambiente; Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa); Desenvolvimento Regional; Justiça e Segurança Pública; Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI); Comunicações; Casa Civil e Gabinete de Segurança Institucional, além do Diretor Geral do INPE. Na reunião, os presentes confirmaram, uma vez mais, a importância estratégica do satélite para o País, uma vez que, além de permitir a ampliação da capacidade de monitoramento de áreas específicas, assegurará a busca d buscar a soberania do País na área espacial.
O satélite contribuirá diretamente para a soberania espacial, cumprindo objetivos da Estratégia Nacional de Defesa, estabelecidos desde 2008, por meio do Programa Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE), que elencou diversas carências no segmento aeroespacial brasileiro, entre elas a ausência de um satélite com sensor radar operado pelo Brasil.
Conduzido pela Força Aérea Brasileira (FAB), o PESE prevê o suprimento de uma dessas capacidades com a aquisição de um microssatélite SAR, sendo operado pelo Centro de Operações Espaciais (COPE) da FAB, promovendo a soberania ao país no monitoramento satelital por meio de imagens de radar.
Em decorrência desse programa, a FAB iniciou um processo de seleção para a aquisição de um microssatélite SAR, definido no PESE como LESSONIA-1, de modo que a definição da empresa fornecedora, o cronograma de gastos e o início da operação do sistema só serão conhecidos ao término do referido processo, conforme o disposto no inciso IX, do art. 24 da Lei nº 8.666/93, regulamentado pelo Decreto nº 2.295/97.
O Processo de Seleção iniciou-se em 31 de julho de 2020, com a emissão de pedido de oferta para as empresas comprovadamente qualificadas para a produção de satélites de sensoriamento remoto radar (SSR), para atendimento aos requisitos operacionais, técnicos, logísticos e industriais. Esse processo tem a previsão de conclusão até o final de 2020, seguindo o previsto na legislação mencionada.
Embora planejado para monitorar a região amazônica, o satélite terá a capacidade de ser empregado no monitoramento de outras regiões estratégicas do País. Como exemplo dessa aplicação, o equipamento poderá ser utilizado no monitoramento da Amazônia Azul, constituindo importante ferramenta ambiental durante eventos como as manchas de óleo detectadas no litoral brasileiro, em 2019.
Em suma, a possível aquisição do novo satélite representa, para o País, uma importantíssima ferramenta tecnológica, permitindo significativa ampliação capacidade de proteger a Amazônia, além de contribuir diretamente para a soberania nacional, especialmente no campo espacial, e para a segurança pública, dentre outros campos.
Portanto, o Ministério da Defesa lamenta profundamente que um veículo de imprensa, destinado a informar a população, preste verdadeiro desserviço, ao publicar reportagem inverídica e fantasiosa travestida como fato.
Assessoria de Comunicação Social (Ascom)
Ministério da Defesa


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