Gênero literário tradicional na França, o “roman à clef” (“romance com chave” ou romance cifrado), sempre foi usado para narrar episódios escandalosos escondendo a identidade dos protagonistas famosos. Madeleine de Scudéry foi popular no século XVII usando pseudônimos inspirados em guerreiros gregos e romanos. No tempo de Luis XVI, os podres da amante do rei e da corte de Versalhes eram contados também por meio de nomes inventados pelos libelistas, que tentavam assim escapar da Bastilha. Em 2020, a tradição narrativa foi retomada — e caiu como uma bomba em Paris. Virou um barraco literário de repercussão internacional ao retratar filósofos, jornalistas, psicanalistas e uma ex-primeira-dama.

“Raphaël escreveu um livro contra mim. Nunca pensei que a história da família desceria tão baixo, contada pelo meu próprio filho” Jean-Paul Enthoven, escritor (Crédito:JOEL SAGET)

O grande escândalo da rentrée, o período que encerra as férias de verão e dá largada aos lançamentos literários, é o novo romance autobiográfico do filósofo Raphaël Enthoven, que narra de forma obscena e cáustica a sua família. Reproduz intrigas que já duram mais de 20 anos e envolvem personagens famosos. Raphaël acerta contas com o pai, um escritor e editor conhecido, diz que teve uma infância terrível e conta seu relacionamento com a cantora, modelo e ex-primeira-dama Carla Bruni (que virou “Beatrice”). É um romance conhecido. Entre 2000 e 2007, os dois foram casados e tiveram um filho, antes de ela se casar com o então presidente Nicolas Sarkozy, em 2008. Mas não foi isso que causou barulho em Le Temps Gagné (Tempo ganho), e sim as revelações do romance anterior dela com o próprio pai, Jean-Paul Enthoven, em 1999 e 2000. Indignado em virar tema da quizumba amorosa, o pai rompeu com o filho.

O episódio já ficou conhecido como “a guerra dos Enthoven”. O pai, que estava em turnê divulgando o thriller erótico Ce qui plaisait à Blanche (O que agradava Blanche), disse que a obra do filho é abominável e indecente e se declarou “de luto”. Rompeu todas as relações com o herdeiro. “É um livro contra mim, contra nossa família. Nunca pensei que a história da família desceria tão baixo, contada pelo meu próprio filho.” Jean-Paul ainda ficou incomodado porque foi confundido na obra pelos leitores e críticos com o padrasto de Raphaël, um psicanalista retratado como “asqueroso”. Por causa disso, o padrasto está processando o enteado por difamação e quer indenização de 100 mil euros.

Guerra dos Enthoven

É uma história familiar complicada. Foi o próprio Jean-Paul Enthoven que apresentou Bruni para o filho. Raphaël começou seu relacionamento com a supermodelo enquanto era casado com a jornalista Justine Lévy (retratada como “Faustine”), filha do filósofo-celebridade Bernhard-Henri Lévy (apelidado de “Elie”), que por sua vez é grande amigo de Jean-Paul. Ao abordar o seu universo pessoal, Raphaël realimentou um enredo que já era público. Justine também já tinha publicado um livro para contar o seu lado da história, Rien de grave (Nada de mais), outro “roman à clef” utilizando pseudônimos, que foi publicado em 2004 e virou um best-seller. Vendeu mais de 100 mil cópias e foi traduzido em várias línguas.

“Meu pai queixava-se da vida ao invés de dar atenção ao filho. Gosta de dinheiro, mas não o possui” Raphaël Enthoven, filósofo (Crédito:JOEL SAGET)

O título do romance de Raphaël é uma referência a Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido. Para alguns, é um caso clássico de tragédia edipiana. Enthoven pai parece concordar. Disse ser compreensível que o filho precise matar simbolicamente a figura paterna para amadurecer. Mas acha esse parricídio metafórico é justificável apenas na adolescência. O filho está com 45 anos, protesta. Ele ficou mais irritado com a exposição pública da vida privada do que com o conteúdo do livro. “Alguns acham que têm o direito de arrancar as máscaras que cada um de nós precisou usar durante a vida para o seu próprio prazer e sem o nosso consentimento”, afirmou. “Como disse Albert Camus, que meu filho tanto gosta de citar, um homem deveria se restringir”, fuzilou. Já o filho é impiedoso com o pai, descrito no livro como alguém “muito ocupado, queixando-se da vida, ao invés de dar atenção ao filho”. É um homem “que gosta do dinheiro, mas não o possui”, descreveu. Com a confusão, Raphaël, que é uma celebridade na mídia francesa, ficou mal na fita. Foi tachado de “narciso misógino”.

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Carla Bruni se fechou em copas diante da catarse literária e permanece quieta. Nunca escondeu sua vida sentimental agitada, mas agora prefere a discrição. Seus antigos “affairs” são famosos e incluem Mick Jagger, Eric Clapton, atores e cineastas. O suposto caso com Donald Trump, segundo ela, não passa de fake news do atual presidente americano. Ela é uma instituição francesa e quase ninguém ousa criticá-la. Na batalha dos Enthoven, é tratada com respeito pelos dois. Em Le Temps Gagné, é mesmo descrita como “a mulher ideal”. Perplexos, os franceses aguardam os novos capítulos da novela.


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