A democracia brasileira sofreu um processo de corrosão de dentro para fora ao longo dos últimos anos, e era uma questão de tempo até que a verborragia de extremistas desse lugar à barbárie. O atentado às sedes dos Três Poderes em Brasília, foi, portanto, uma tragédia anunciada. Jamais pensou-se, porém, que o caminho para o caos seria tão simplório. Os terroristas conseguiram acesso livre ao Planalto, Supremo e Congresso graças a um plano de segurança capenga e negligente do governo do Distrito Federal. Mas as falhas que abriram espaço para o episódio foram reforçadas por omissões dos Ministérios da Defesa e da Justiça e o corpo mole da Procuradoria-Geral da República.

A principal parcela de culpa, por óbvio, está nas mãos da gestão distrital, responsável pela proteção da área central de Brasília. Está justificado, portanto, o afastamento de Ibaneis Rocha do cargo de governador por 90 dias e a ordem de prisão do ex-secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, conforme decisão do ministro Alexandre de Moraes, confirmada pelo Supremo, além da intervenção federal na segurança da capital. Os erros do governador começaram pela escolha de Anderson Torres, homem forte de Bolsonaro, para a Secretaria de Segurança. Antes de assinar a nomeação, Ibaneis recebeu alertas de aliados, e até mesmo de integrantes do STF, que foram uníssonos ao pontuar que não seria próprio um nome de confiança do capitão assumir um cargo tão sensível.

Não bastasse, Ibaneis tratou recentemente as manifestações bolsonaristas como democráticas, mesmo depois do episódio de terror em Brasília, em 12 de dezembro, quando extremistas incendiaram carros em Brasília e atacaram prédios das polícias Civil e Federal. Alertado por órgãos de inteligência, como a Abin, sobre os riscos de um movimento caótico, recusou-se a replicar em 8 de janeiro o modelo do plano de segurança do Sete de Setembro, um dos mais sólidos já implementados na capital, e permitiu o amplo acesso dos terroristas à Esplanada, sem um efetivo robusto da PM-DF para lhe fazer frente. Agiu somente quando a barbárie tomou as ruas. “O governador demitiu Anderson Torres, mandou todo o efetivo policial para a rua e pediu apoio de forças federais”, pontuou um aliado às 16h47 de domingo, quando os Três Poderes já haviam sido invadidos e depredados.

FALHAS Múcio (à esq.) e Dino (à dir.) cometeram erros ao menosprezarem ações criminosas (Crédito:José Cruz/Agência Brasil)

Ibaneis justificou suas falhas ao STF. Em um memorial, a defesa do governador afastado sustentou que o plano de ações de segurança pública foi sabotado. Para eximi-lo da culpa, usou como argumento imagens da deserção de postos por PMs, que, em vez de conter os terroristas, filmavam o quebra-quebra. Ibaneis acrescentou que Anderson Torres, que estava nos EUA desde as vésperas da tragédia — e deve ser preso ao chegar ao Brasil, por determinação de Moraes —, viajou sem avisá-lo e fora do período de férias.

Ao menos a última parte da versão é reforçada pelo interventor Ricardo Cappelli, o qual sublinhou que o recesso do secretário começaria somente na segunda-feira seguinte ao atentado, em 9 de janeiro. “É muito estranho que o secretário de Segurança Pública assuma a sua função no dia 2, exonere e troque todo o comando e viaje, e alguns dias depois aconteça o que aconteceu”. Isso não é coincidência, ponderou. A situação de Anderson Torres ficou ainda mais delicada quando a PF revelou ter encontrado em sua residência uma minuta de decreto para Bolsonaro instaurar estado de defesa com o objetivo de reverter o resultado das últimas eleições.

A culpa dos ministros

Mas a culpa não recai somente no colo do GDF. José Múcio Monteiro virou alvo de um bombardeio. Para aliados de Lula, o ministro da Defesa é corresponsável pelo caos por ter duelado com o ministro da Justiça, Flávio Dino, e batido o pé para não desmobilizar os acampamentos golpistas logo após a posse do petista, em nome de uma saída negociada. Nomes da cozinha do Planalto acrescentam que, na primeira reunião ministerial do governo, na sexta-feira, 6, ele assegurou que informes dos serviços de inteligência das Forças Armadas apontavam para um cenário de controle no final de semana. Lula reconheceu a falha de Múcio, mas o manteve no posto. “Se eu tiver que tirar cada ministro na hora que ele comete um erro, sabe, vai ser a maior rotatividade de mão de obra da história do Brasil”, anotou o presidente que, no final de semana, estava irado com o subordinado.

Dino é outro que não saiu incólume. Entre petistas, entende-se que a PRF, que trabalha sob o guarda-chuva do ministério, cometeu um erro crasso ao catalogar os mais de 100 ônibus que chegaram a Brasília para a manifestação sem, contudo, detectar o grau de risco da movimentação. Em outra ponta, apesar do aval para o emprego da Força Nacional na Esplanada, pontuam petistas, Dino não chegou a ir a campo para verificar o contingente de policiais nas ruas, tampouco a necessidade de eventual reforço.

PREMEDITADO O interventor Ricardo Cappelli pergunta: “Por que Anderson Torres viajou para o exterior às véspera da tragédia?” (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Na PGR, os dedos são apontados para Augusto Aras. É que, ainda em dezembro, ele extinguiu grupos de investigação sobre golpistas no MPF dos estados e do DF e barrou a ação de procuradores que pretendiam desmobilizar os acampamentos antidemocráticos. “E não foi apenas isso. A PGR posicionou-se de forma contrária, por exemplo, à prisão preventiva dos criminosos que fizeram a arruaça em Brasília em 12 de dezembro, em um ensaio para o capitólio brasileiro”, lembra um subprocurador-geral, sob reserva. O fato é que erros e omissões foram generalizados e não foi por falta de aviso que o maior ataque às instituições democráticas brasileiras tenha ocorrido. Exatos dois anos e um dia antes da catástrofe de domingo, Bolsonaro prometeu: “Se não tiver voto impresso em 2022, vamos ter problema pior que os EUA”.