Um dos mais experientes diplomatas brasileiros, Roberto Abdenur ajudou durante 40 anos a desenvolver parcerias estratégicas com a China, a Alemanha e os EUA, países nos quais atuou como embaixador. Ele contribuiu para fortalecer a liderança do País no cenário internacional e nos órgãos multilaterais. É com essa experiência que analisa de forma crítica, e com espanto, a atuação do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. “A política externa dessa gestão não está fincada na realidade dos fatos. Flutua numa espécie de nuvem de elucubrações alucinadas contra fantasmas imaginários”, diz, sobre conceitos como “globalismo”, “climatismo” e “covidismo”. Abdenur também reprova a subserviência de Jair Bolsonaro a Donald Trump. O brasileiro desenvolveu sua política externa “pendurado no pescoço do Trump”, condena. Abdenur afirma que a luta ambiental será uma fonte de atrito do brasileiro com Biden, assim como a defesa da democracia no mundo, que será uma das prioridades do americano.

O ministro Ernesto Araújo diz que a pandemia é um “mecanismo de controle e uma histeria biopolítica”, entre outras declarações. Essas falas têm ressonância?
A ressonância internacional das declarações do ministro é ridícula. Elas causam ironia, gozação e o desprestigio para a diplomacia brasileira, tamanho absurdo que representam.

Ele tem alguma base para fazer essas declarações?
A política externa conduzida pelo ministro Ernesto Araújo não está fincada na realidade dos fatos. Flutua numa espécie de nuvem de elucubrações alucinadas contra fantasmas imaginários: o globalismo, a globalização conduzida pelo marxismo cultural. É um absurdo completo porque a globalização é um fenômeno econômico, comercial, que não tem nada que ver com o marxismo. Ele criou a expressão “climatismo” para demonstrar a posição negacionista do governo em relação às mudanças climáticas. Depois criou o ‘covidismo’ para denunciar a histeria com a pandemia, ‘comunavírus’ para atacar a China, responsabilizando-os pela pandemia. São emanações da ideologia da extrema-direita que está na essência do governo.

José Cruz/Agência Brasil

Essa ideologia tem ligação com o governo Trump?
Sim, a extrema-direita americana é uma de suas fontes de inspiração. Eles têm clara inclinação à violência, com milícias armadas. Nós vimos isso na invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro.

Os ataques à China e a inabilidade na negociação com a Índia prejudicaram a vinda de insumos para as vacinas?
Seguramente há problemas burocráticos e técnicos que podem ter contribuído para atrasar a remessa. Mas houve erros graves da diplomacia brasileira. No caso da Índia, o país levantou na Câmara Mundial de Comércio a proposta de que as patentes das vacinas fossem suspensas temporariamente para que se pudesse expandir a produção global. O Brasil se posicionou ao lado dos EUA, contra a quebra de patentes, embora, nós não tenhamos patentes farmacêuticas para defender. Uma demonstração de como a diplomacia de Bolsonaro e Araújo foi submissa e subserviente à política externa de Trump. Em relação à China, desde o início são numerosas as desfeitas e as caneladas de Bolsonaro, seus filhos e Ernesto Araújo contra o país. O que naturalmente não contribuiu. Agora, o presidente se vangloria por ter conseguido a vacina, mas quem conseguiu mesmo foi o governador João Doria. O governo foi omisso.

A União Europeia pode dificultar a exportação de insumos para o Brasil?
Os países desenvolvidos estão tomando providências para assegurar que sua população seja vacinada. Só o Canadá tem cinco vezes a quantidade necessária para imunizar sua população. O mesmo estão fazendo Alemanha, França e outros. Esses estados têm um discurso de imunização de toda a humanidade, mas na prática estão criando obstáculos. Este é o momento em que a diplomacia brasileira tradicional, realista e pragmática, tomaria a iniciativa de criticar e assumir a liderança dos países em desenvolvimento.

Nas negociações de compra pela Coronavac, Ernesto Araújo disse que as relações com a China seguiam normais. Isso é mentira?
Sim. Na carta que Bolsonaro enviou a Joe Biden, ele critica fortemente a China. Isso não é do interesse brasileiro. Fui embaixador na China e sei como eles agem. A China não passa recibo imediatamente, os chineses têm uma visão de longo prazo e tendem a colocar suas respostas e iniciativas numa perspectiva de médio e longo prazo. Os ataques gratuitos e contraproducentes naturalmente vão prejudicar a nossa relação. Principalmente na pandemia. Mas temos uma parceria sólida com China, que construímos no governo Itamar Franco. Além disso, a China tem o interesse estratégico de o Brasil não se alinhar aos EUA na confrontação entre os dois países.

O ponto principal é a tecnologia 5G?
Exatamente. O ponto fulcral que diz respeito ao Brasil. Se vamos ceder às pressões dos EUA e barrar a Huawei. A China não quer que o Brasil se alinhe aos EUA especificamente no que diz respeito à empresa, mas também em termos estratégicos. Não quer o Brasil alinhado com os EUA, como esteve no governo Trump. A União Europeia optou pela China, mas vai manter sua autonomia.

A União Européia vai mudar com a aposentadoria de Angela Merkel?
A Angela Merkel deixa uma herança muito importante de bom governo, de boa política. E deixa também um legado positivo no avanço da União Europeia. Quando fui embaixador na Alemanha vi com emoção, com admiração, como aquela população abriu mão de sua moeda própria em prol da adoção do euro, em prol de avanços da União Europeia. O bloco passou por abalos, sofreu com o Brexit, mas está mais forte do que antes. A Alemanha, como a China, opera em médio e longo prazo.

O governo Bolsonaro promoveu o alinhamento político incondicional com Donald Trump. Isso vai prejudicar nossa relação com o governo Biden?
Bolsonaro desenvolveu sua política externa pendurado no pescoço do Trump, se colocou numa posição subalterna. Com isso ele colocou o Brasil numa posição de subserviência. São duas palavras importantes. Submissão significa baixar a cabeça diante do que o outro pensa. Subserviência significa prestar serviços ao outro. A política externa brasileira deu as costas aos interesses do Brasil em muitas questões: Oriente Médio, Clima, Meio Ambiente, organização de Saúde, Direitos Humanos, Comércio. Mas também secundou o País ao trumpismo, numa postura completamente absurda, que é a rejeição ao multilateralismo. Quando a ONU celebrou seus 75 anos, houve uma conferência mundial, virtual, e Ernesto Araújo fez um discurso contra as Nações Unidas. Isso é algo inédito na história.

O Meio Ambiente é prioridade para Biden. Essa questão vai prejudicar a relação do Brasil com os EUA?
Esse vai ser um ponto nevrálgico da relação com os EUA. Não se trata apenas de combater as mudanças climáticas. A prioridade é transformar o país numa economia descarbonizada. Biden deve pressionar outros países, como o Brasil, a seguir nessa direção.

Há outro aspecto fundamental em relação aos EUA?
O outro grande tema internacional de Biden é a democracia. Já foi anunciada para o segundo semestre uma reunião das grandes democracias, com dois objetivos. O primeiro é para coordenar a abordagem em temas como o clima, os Direitos Humanos, a criminalidade e recessão econômica. O segundo tema será reforçar a democracia onde estiver ameaçada. Por exemplo: na Hungria e na Polônia, no caso da União Europeia. Biden e seus assessores sabem que as juras de amor de Bolsonaro pela democracia não são fidedignas.

O Brasil deve ser convidado para essas discussões?
Quase ao mesmo tempo em que o presidente enviava uma carta a Biden, se comprometendo com a democracia, Bolsonaro disse uma frase da maior gravidade: “Só os militares têm condições de decidir se vivemos numa democracia ou numa ditadura”. É um atentado à democracia. Se o Brasil for convidado, vai sofrer críticas e cobranças. Se não for convidado, isso agrava o extraordinário isolamento político e diplomático em que o País já está.

O governo Biden tem um secretariado marcado pela diversidade, com negros e mulheres. É uma mudança de paradigma nos EUA?
É muito grande. Nem o Obama fez tanto. Em suas memórias, o Obama descreve como ele percebia o desconforto dos brancos, da maioria branca, com ele, por ele ser negro. O Obama foi um liberal, fez coisas positivas, mas o Biden vai muito mais longe. Há a secretária do interior que é uma representante indígena. É a primeira vez que uma indígena americana entra no centro do governo. Algo muito bom.

A China é a principal compradora de títulos do Tesouro americano. Joe Biden terá muito trabalho para reverter o estrago na relação bilateral causado por Trump?
A confrontação estratégica dos EUA com a China não começou com Trump. Ele radicalizou com a guerra comecial, com as criticas relacionadas com a pandemia. Acredito que Biden será mais hábil. O secretário Peter Navarro, que tem um livro chamado “Morte pela China”, é um fervoroso inimigo da China. Mas o desligamento é imposível. Os dois países estão umbilicalmente ligados nas áreas econômica, social e financeira. Creio que o governo Biden terá dois problemas. De um lado, vai continuar a disputa com a China no plano militar e tecnológico. De outro, deve buscar áreas de cooperação. A China de Xi Jin Ping se tornou um dos países líderes na luta contra a mudança climática.

O Brics foi relegado a um segundo plano por Trump e Bolsonaro. Isso vai mudar com Biden?
O desinteresse de Bolsonaro pelo Brics foi uma manifestação da fidelidade canina dele ao Trump. Mas o Brics é um núcleo que o Brasil não pode ignorar porque se encontra na companhia de quatro grandes potencias internacionais. Os Brics passou de um acrônimo econômico inventado por um economista a um bloco político organizado. Agora, há o Banco do Brics, que conta com um escritório em São Paulo. Mas Bolsonaro tende a continuar com o desprezo ao Bics, infelizmente.