Erasmo, você partiu já meio mês. A minha dor, no entanto, ainda é a do primeiro minuto — normal com aqueles que a gente considera “irmão camarada”, não é mesmo? Para você não há mais o escorrer do tempo, essa doida e doída noção de tempo da qual não podemos fugir — você transcendeu, como maravilhosamente declarou a sua Fernanda Passos. Pois bem, cá fiquei eu.
E, para te homenagear em minha solidão, escrevi: fim de festa resta, em cada aresta, este ou esta, nesta, resto eu.

Criança, eu contava as horas da semana (pois é, sempre a marcação do tempo) para que chegassem as “nossas tardes de domingo”. Roberto, Wanderléa, você, Wanderley Cardoso, Martinha, Ronnie Cord e mais gente boa a caber em “O calhambeque”. Ao te ver, eu sentia ter um amigo que bastaria dar um passo para sair da televisão e pisar a minha casa — antigo televisor Philco, tipo móvel de sala, um dos primeiros com controle remoto, barulhento para mudar de canal, mas chique demais.

A sua cara de mau, para festa e delírio das moças, jamais me convenceu. Eu, mesmo criança, já intuía que tudo isso fazia parte de um truque da indústria cultural – claro que essa expressão, indústria cultural, só soube dela muito tempo depois, na Faculdade de Sociologia da Universidade de São Paulo. De volta à infância, meus pais conversavam sobre os “tempos (de novo o tempo) que não iam bem”. Logo veio o AI-5 da ditadura militar que afogou o Brasil no sangue de tantos torturados e mortos. Eu ingressei na adolescência e você foi um dos esteios do meu refletir que o Brasil mantinha a duras penas uma franja de delicadeza: você era essa delicadeza, delicadeza que me energizava contra os ditadores. O Brasil dos anos dourados se despedaçava, mas você, Erasmo, me fazia lutar – sobretudo devido à sua íntegra conduta de pessoa humana e seu excelente caráter.

Erasmo, para te homenagear, escrevi: fim de festa resta, em cada aresta, este ou esta, nesta resto eu

Alguns chamavam a sua turma do rock de “politicamente alienada”. Bobagem: quando houve a diáspora, Caetano Veloso exilado em Londres, Roberto foi quem teve a coragem de visitá-lo. De retorno ao Brasil, o homenageou com Debaixo dos caracóis dos seus cabelos – coisa de gênio, uma pancada nos ditadores e os censores nem perceberam.

Lutei contra a ditadura em assembleias estudantis, lutei com livros e passeatas, lutei visitando presos políticos, denunciando tortura, derrubando soldados dos cavalos que eram lançados contra nós nas manifestações. Você, Erasmo, lutou com a sua arte de abrir a garganta, já nos ensinando sobre igualdade de gênero e democracia social e racial. O meu televisor Philco o tempo o desandou. Já você seguirá inteiro eternamente.