São seis horas da tarde na cidade de São Paulo. Na avenida Sumaré, uma mulher é agredida por assaltantes que tentam levar a sua bolsa. Ela grita e pede socorro às pessoas que passam ao seu redor: “Estou sendo assaltada!”. A comoção se insinua, mas logo termina quando o assaltante investe no disfarce de marido traído. “Não é um assalto. Você me traiu, sua vagabunda”. E como se aprendeu que em briga de marido e mulher não se póe a colher, ninguém se mete e a mulher termina a noite assaltada e agredida. Nessas terras, desde que homem nasce homem e mulher nasce mulher, uma bolsa, ou um atentado à propriedade, é mais grave do que a violação de um corpo feminino. O fato de homens atacarem e matarem mulheres à luz do dia sem qualquer pudor acontece porque a violência de gênero é autorizada pela sociedade e o comportamento agressivo masculino é justificado pela culpabilização da vítima. A escalada dos feminicídios revela que o País enfrenta uma doença social em que atitudes extremas eclodem de uma hora para outra em lugares insuspeitos.

Os últimos números de violência contra a mulher deixam claro que a sociedade brasileira sofre de uma séria enfermidade. Há algo muito errado acontecendo com os homens, e atos sexistas, em que eles se impõem pela força, estão sendo cometidos em proporções alarmantes. Uma epidemia de agressões e de assassinatos passionais acomete o País. Dados do Mapa da Desigualdade Social 2019 divulgados terça-feira 5, pela Rede Nossa São Paulo, uma ONG que acolhe vítimas, mostram que os casos de feminicídio na capital paulista aumentaram 167% no ano passado. No primeiro semestre deste ano, o crime de morte por questão de gênero cresceu 44% na cidade, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. Foram 82 casos. Em Brasília, estudos mostram que enquanto os homicídios caem, os feminicídios sobem. Registros de outros tipos de agressão contra as mulheres também crescem. O serviço Ligue 180 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos recebeu 60.580 denúncias de violência entre janeiro e agosto, uma a cada seis minutos.

COVARDIA Patrícia Irrthum foi assassinada na semana passada com tiros na nuca, no rosto e no peito e o primeiro suspeito é o marido,  Sargento da PM: “Fui trair meu marido ‘polícia’ e deu nisso” (Crédito:Divulgação)

Casos de feminicídio em São Paulo aumentaram 167% no ano passado. No primeiro semestre de 2019, esse crime cresceu 44% na cidade

“A maior parte dos casos de feminicídio ocorre depois da ruptura de um relacionamento, quando a mulher termina uma relação abusiva. Os homens não aceitam a nova situação e matam”, diz a psicóloga Vanessa Molina, porta-voz da Associação Fala Mulher, que oferece assistência e proteção para vítimas de violência doméstica e atendeu oito mil mulheres em 2018. “Os abusos começam antes da violência física, com manifestações de ciúmes, xingamentos e com o afastamento da mulher de familiares e amigos. É como se o homem achasse que a mulher pertence a ele, que não se conforma com a perda do controle sobre sua ‘posse’”. Para Vanessa há uma necessidade urgente de mudar a cultura machista que está por trás dos crimes de ódio, que acontecem em famílias de todas as classes sociais e, frequentemente, são cometidos dentro de casa, no lugar em que a mulher deveria se sentir mais segura. Foi o que aconteceu com Patrícia Salviano Irrthum, de 23 anos, assassinada na segunda-feira 4, em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ela foi morta com tiros na nunca, no rosto e no peito e o principal suspeito é o marido, o sargento da PM Glaysson de Souza Costa, de 46 anos, que está foragido. Depois do crime foram publicados vários posts no WhatsApp de Patrícia, escritos pelo criminoso, e um deles dizia: “Fui trair meu marido ‘polícia’ e deu nisso”.

Apesar do endurecimento das leis que penalizam esse tipo de violência, a epidemia de crimes passionais não arrefece. A Lei Maria da Penha, que estabelece cinco formas de agressão machista (física, psicológica, moral, patrimonial e sexual) e a Lei do Feminicídio, que caracterizou o homicídio de gênero, deram proteção legal para as mulheres, aumentaram o rigor da pena para agressores e assassinos, mas não inibiram os atos extremos.

Na semana passada, em mais uma demonstração de que a sociedade tenta reagir à doença social, o Senado aprovou em primeiro e segundo turno proposta de emenda constitucional (PEC) que modifica o inciso 42 do artigo 5º da Constituição e torna inafiançável e imprescritível o crime de feminicídio. A PEC segue agora para a Câmara e tornará a cadeia inevitável para os assassinos de mulheres. O que se vê, porém, é que o feminicida, na maioria dos casos, não está preocupado com as consequências de seu ato. Age enlouquecidamente e acha que está com a razão. O ódio e o desejo de vingança são maiores do que o medo da pena. Ele mata a mulher no meio da rua ou em lugares públicos e depois foge ou se suicida. No fim de semana, quando as famílias se reúnem, há uma incidência maior desses crimes.

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PREVENÇÃO Para a psicóloga Larissa Schmillevitch o problema não será resolvido só com leis: é preciso reeducar a sociedade e melhorar o acolhimento das vítimas (Crédito:Divulgação)

Medidas preventivas

“Não será só com leis que vamos resolver o problema.

É preciso reeducar a sociedade, é um processo evolutivo”, afirma Larissa Schmillevitch, gerente do Mapa do Acolhimento, ONG que cuida de mulheres ameaçadas e agredidas. “Outra questão é achar que a violência contra a mulher é algo privado em que ninguém se mete. A sociedade precisa entender que se trata de algo público, que pode ser evitado”. O Mapa do Acolhimento é uma rede de solidariedade coordenada pela ONG Nossas, um laboratório de ativismo feminista. Para Larissa, o aumento das denúncias tem relação direta com o crescimento da violência, e também com o fato das mulheres terem mais acesso às informações e estarem menos caladas e conseguindo identificar com clareza as situações abusivas de seu relacionamento. Isso permite que se tomem medidas para impedir atitudes violentas de maridos e namorados transtornados.

A medida principal que as ativistas dos direitos da mulher defendem para conter a onda de feminicídios é a prevenção. Segundo ela, esse crime pode ser inibido com uma atuação assistencial no início do ciclo da violência, quando começam os abusos. Mas mulheres que denunciam seus algozes precocemente se expõem a um risco maior e necessitam de proteção. “A lei é muito boa, mas precisa ser aplicada de forma adequada”, afirma Larissa. “A gente enfrenta problemas nas delegacias da mulher por falta de profissionais qualificados e percebe um sucateamento nos serviços públicos de atendimento.

É difícil realizar uma denúncia”. Quer dizer, as mulheres estão falando mais sobre seus dramas, mas não estão sendo ouvidas.


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