2024 será o ano em que a IA generativa deve ganhar novas aplicações em robótica, entretenimento e medicina. Essa é a opinião de Ricardo Murer, cientista computacional, especialista em IA e Inovação com décadas de experiência no setor de tecnologia e passagens por empresas como Amazon e Microsoft.

“Em 2024, acredito que veremos os primeiros filmes criados com imagens e sons gerados inteiramente por IA, a partir do texto de roteiros”, diz o especialista, que também possui no YouTube o canal Nano Saber. Nessa conversa, Murer também fala sobre as “alucinações” da IA e comenta os riscos do desenvolvimento acelerado da tecnologia. Confira a entrevista.

Como a IA generativa se coloca no contexto histórico do desenvolvimento da Inteligência Artificial?

Sabemos que este conceito de Inteligência Artificial existe desde Alan Turing. Lá nos anos 1950 ele foi pioneiro no assunto, em um tempo em que computadores ocuparam salas inteiras. De lá para cá são 70 anos de evolução. E ela já é usada de várias formas há algum tempo.

O aprendizado de máquina – que é uma forma de IA – consiste basicamente em olhar dados, identificar padrões e fazer predição. Um exemplo disso é a previsão do tempo.

Nos últimos anos, porém, iniciou-se uma nova fase com uso massivo de redes neurais, e isso por sua vez evoluiu para o uso da chamada IA generativa. E aplicações como o ChatGPT levaram para um público mais amplo aquilo que já era pesquisado por empresas e instituições há algum tempo.

Um dos pontos criticados nas ferramentas de IA generativa são as chamadas “alucinações”, ou seja, os erros nas informaçãos fornecidas. Por que eles ocorrem?

Quando usamos uma ferramenta de IA generativa mais geral, ela não tem um limite que diz: “isso eu não sei, está fora do meu conhecimento e não vou responder”. Uma aplicação como o ChatGPT é treinada com base em uma quantidade gigantesca de informações, e algumas dessas informações não são verdadeiras. Elas são coletadas da internet sem verificação.

Além disso, essas aplicações trabalham com probabilidade. E em muitos casos é uma probabilidade burra. Elas não vão, por exemplo, aferir probabilisticamente e comparar dados para saber se uma informação é mais correta do que a outra. Elas seguem uma tendência. E sabemos que na internet há sites de conteúdo de credibilidade, mas também há muito conteúdo falso.

A segunda geração dessas ferramentas, que já está chegando ao mercado, valida melhor os dados de treinamento e delimita a área de conhecimento. Elas podem falar apenas sobre política, mas não sobre outras áreas. Isso é uma evolução, mas isso tudo ainda está muito no começo. Agora em novembro o ChatGPT completou um ano no mercado. Ou seja, é tudo muito novo.

Um assunto muito comentado são os riscos envolvidos no desenvolvimento acelerado da IA. Houve rumores inclusive de que esta questão poderia ter motivado a demissão de Sam Altman da OpenAI, com retorno poucos dias depois. De forma prática, que riscos são esses?

Os riscos no uso da tecnologia não são novidade. Vemos há anos atuação criminosa de hackers explorando todo tipo de falha de sistemas. Mas a IA hoje é o tema do momento, é vidraça. E alguns acabam exagerando nas críticas, e extrapolando possíveis consequências de erros.

Entretanto, alguns riscos existem de fato. Um deles é que, por conta do rápido desenvolvimento da IA, os responsáveis pela segurança das aplicações não estão tendo tempo suficiente para garantir que as aplicações sejam mais seguras. Como os testes de segurança muitas vezes demoram e “atrasam” o lançamento dos projetos, algumas empresas acabam optando por oferecer o produto e aprimorar a segurança em paralelo. É trocar o motor do avião com ele voando. E aí, claro, há riscos de vazamento de dados e brechas de segurança.

ENTREVISTA/Ricardo Murer: "Em 2024, Inteligência Artificial vai gerar filmes inteiros"
Murer: aposta em educação e capacitação em IA (Crédito:Divulgação)

Treinar e rodar aplicações de IA custa muito caro, devido a toda estrutura de computação que é exigida. E por isso muitos analistas comentam que há a possibilidade desta tecnologia ficar na mão de poucas empresas. Como você avalia esta questão?

Sim, o custo para treinar e rodar aplicações de IA fica na casa dos milhões de dólares, incluindo aí o acesso aos processadores – na maioria dos casos GPUs da Nvidia – e pessoal técnico envolvido na aplicação. E o risco de concentração realmente existe.

Um desdobramento dessa situação é que os players que dominam o mercado podem impor valores que restrinjam o uso dessas aplicações apenas para poucas pessoas e/ou empresas. À medida que novos modelos são criados, quem não paga mais vai ficando com um modelo “atrasado”. Isso já acontece em alguns casos. Você começa a operar e se depara com avisos do tipo: “Isso é só na versão superior, compre aqui o novo modelo”. Então abismo digital vai ser sempre uma realidade. Não é só concentração do conhecimento, mas a concentração para poucas empresas que vão ter condição de usar os modelos de forma eficiente.

Na sua visão, quais são as tendências para mercado de Inteligência Artificial em 2024?

Creio que há três tendências claras para o próximo ano. A primeira é a convergência entre aplicações de IA e robótica. Isso fica claro quando vemos o robô Optimus da Tesla, em sua segunda versão, e a evolução dos robôs da Boston Dynamics, por exemplo.

São dois casos de empresas que precisam provar que este tipo de avanço robótico tem alguma utilidade prática. Então o uso de IA nesses robôs deve aumentar o interesse em torno desta área. É uma convergência natural.

Outros exemplos dessa convergência são produtos mais voltados para o consumidor final, como dispositivos que conversam com assistentes digitais como a Alexa. Esses assistentes estão aí há oito, nove anos, e não conseguem conversar realmente. Só respondem perguntas simples. Não possuem uma interface de conversação realmente sofisticada. Mas com os avanços de IA, esses dispositivos agora poderão avançar muito nesse campo. Eles poderão se tornar mais empáticos e conversacionais.

A segunda frente que eu vejo é a frente de imagens em movimento. Já existem algumas startups, como a Pika Labs e a Runaway, estão trabalhando em ferramentas de IA que geram vídeos a partir de textos. Entendo que este tipo de aplicação vai evoluir e até o fim do ano teremos filmes inteiros sendo gerados a partir de roteiros. A partir do texto, a ferramenta gera cenários, atores e outros elementos do filme. E isso é uma quebra muito grande de paradigma na indústria do entretenimento.

A terceira tendência é na área de saúde, com uso de IA para desenvolvimento de proteínas e outros componentes farmacológicos.

Que medidas a sociedade pode tomar para lidar melhor com os avanços da Inteligência Artificial?

Creio que o foco maior deve ser na educação e capacitação das pessoas para lidar com a IA. Quando o inglês começou a se tornar importante no mercado de trabalho, muitas pessoas passaram a frequentar as aulas. Então a IA está em uma situação parecida hoje, o que demanda uma série de iniciativas para a educação da sociedade. E isso atualmente não está sendo fornecido, pelo menos não em grande escala.