Em 1973 os EUA eram presididos pelo conservador Richard Nixon e a Suprema Corte tomou a mais liberal de suas decisões, impactando o mundo: legalizou o aborto. Em 2021 os EUA são presididos pelo liberal Joe Biden e a Suprema Corte está prestes a dar a mais conservadora de suas sentenças: proibir o aborto, o que também impactará diversas nações, inclusive o Brasil. Esse descompasso demonstra independência do poder judiciário em relação ao executivo, o que é salutar à democracia. Ocorre, no entanto, que, passado quase meio século, nem o sistema jurídico nem o regime democrático conseguiram pacificar a questão. Desembarcam no tribunal, anualmente, dezenas de ações abordando o tema e a maioria delas quer restrições. A mais recente iniciativa nesse sentido vem do Mississipi e tem a seu favor a composição da Corte: seis juízes republicanos conservadores e três democratas liberais. A ação pleiteia que seja declarada constitucional uma lei daquele estado, segundo a qual a gravidez somente pode ser interrompida até a décima quinta semana de gestação.

FAKE NEWS Norma McCorvey (à esq.), em 1973: a lei do aborto nasceu de uma mentira (Crédito:J. Scott Applewhite)

Isso tromba de frente com o que vale atualmente, instituído em 1992. Tentando colocar fim à polêmica, a Suprema Corte acabou ampliando o problema ao acrescentar o critério da “viabilidade fetal”. Fixou que a partir da vigésima segunda semana, a contar da data de fecundação, nenhuma mulher está autorizada a abortar legalmente. Reduzir de vinte e duas semanas para quinze já significa uma profunda revisão na legislação, e não é sem motivo, portanto, que o presidente do tribunal, o conservador John Roberts, declarou que sete semanas a mais ou a menos não fazem diferença. Dá a impressão de que ele quer acomodar as partes, mas, na verdade, Roberts apóia a causa do Mississipi. Além disso, outros três magistrados, dentre os seis republicanos, manifestaram-se na direção de que é melhor revogar a lei como um todo do que limitar-se a alterá-la para as quinze semanas. Ou seja: o país, que no rastro do movimento da contracultura legalizou o aborto e levou o assunto a ser debatido em diversas nações, sinaliza, agora, que recuará. “Desde 1973, a decisão da Suprema Corte reverbera em todo o planeta”, diz Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Instituto de Bioética, de Brasília. “Se o recuo acontecer, com certeza o tema do aborto no Brasil será impactado”, diz a ativista de direitos humanos e vereadora paulistana Erika Hilton. “Pautas relativas a sua descriminalização, por exemplo, irão retroceder”.

Richard Nixon pediu à Suprema Corte para não ser liberal, Joe Biden pede para que ela não seja conservadora. O primeiro não foi atendido; o segundo também não será

Com ajuda da Playboy

No Brasil, a discussão ganhou espaço, até no interior das religiões, com o fim da ditadura militar, em 1985. Os movimentos cresceram, com propostas baseadas no modelo norte-americano, juntando o direito da mulher sobre o próprio corpo ao crescimento dos índices de jovens que adoecem ou morrem ao abortarem clandestinamente em situações sanitárias inadequadas. “Se os EUA revisarem a lei, empurrão mulheres às clínicas clandestinas, como ocorre no Brasil com as pobres”, diz Paula Nunes, advogada criminalista e defensora dos direitos humanos. Não se está, nessa reportagem, defendendo posicionamento favorável ou contrário ao aborto; está-se, isso sim, apenas narrando fatos nos campos jurídico e comportamental. “Em 2020 Brasil e EUA assinaram a Declaração de Genebra que reforça o conservadorismo nessa área”, diz Paula. “O Brasil, historicamente, tem um discurso conservador, que se agrava agora com o avanço da direita”, afirma Erika. No País, o aborto é legal em casos de violação sexual, na hipótese de feto anencéfalo e se a gestação coloca em risco a vida da mãe.

De volta aos EUA, há um aspecto envolvendo a legalização que jamais o sistema judiciário do país conseguiu digerir: tudo nasceu de fake news. Duas advogadas recém-formadas, Sarah Weddington e Linda Coffee, deram entrada em 1970 em um processo representando Norma McCorvey. De tribunal em tribunal, chegaram à Suprema Corte sustentando a tese de que Norma (identificada no processo como Roe) estava grávida em decorrência de estupro coletivo. A discussão se prolongou, a criança nasceu e foi entregue a uma instituição pública. Como desfecho, a Corte legalizou o aborto. Em 1987, Sarah admitiu que mentira: não houve estupro algum, Roe engravidara em uma relação consensual, e o caso teria sido financiado pela revista Playboy. Roe passou a trabalhar em uma clínica de abortos, depois se tornou evangélica e pregava justamente contra a lei que ajudara a criar. A sociedade norte-americana polarizou-se entre “Pro Life” (a favor da vida) e “Pro Choice” (a favor do direito à escolha). À época, o conservador Richard Nixon pediu para a Suprema Corte não ser liberal na decisão. Na semana passada, o liberal Joe Biden pediu para que ela não seja conservadora. O primeiro não foi atendido; o segundo também não será.