O descaso e a irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro na condução de uma mentirosa política sanitária diante do combate ao coronavírus teve novo desdobramento na semana passada ­— desdobramento, aliás, que mais uma vez desprestigia o próprio Brasil no exterior e dificulta a vinda de investidores. Pela quarta vez, desde o início da pandemia, Bolsonaro é denunciado junto ao Tribunal Penal Internacional da Corte de Haia, na Holanda.

Diferentemente das ocasiões anteriores, no entanto, a iniciativa partiu agora de uma ampla frente de entidades que representam nada menos que um milhão de trabalhadores da saúde no País. Ao mesmo tempo, internamente no Brasil, Bolsonaro é criticado pela ala progressista da Igreja Católica. Uma coisa reforça a outra e ambas têm o pano de fundo comum do sofrimento dos brasileiros na tragédia da doença.

O PROGRESSO E O ATRASO Dom Claudio e o presidente, sem máscara, conversando com um gari: visões distintas sobre a vida (Crédito:fMax Rossi; Adriano Machado)

Por mais progressista que seja um pároco ou por mais conservador que seja um bispo, nenhum deles endossa quem posa de garoto propaganda da cloroquina

Militares na Saúde

Em Haia, a Rede Sindical Brasileira UNISaúde acusa o capitão de “falhas graves e mortais”, ressaltando o fato de que “existem indícios de crime contra a humanidade na adoção de ações negligentes”. Nas sessenta e quatro páginas do documento, outra falha da gestão presidencial, tendo ainda a incúria como base, é realçada: o fato de o Brasil seguir, em meio à pandemia e por aproximadamente três meses, sem um ministro da saúde. Pior ainda: tem em seu lugar, interinamente, um general respondendo pela pasta. Chama-se Eduardo Pazuello e ele reforça a tese de Bolsonaro contra o distanciamento social, defendido pela OMS. Pazuello também apoia o tratamento com cloroquina, condenado pela mesma OMS.

O Ministério abriga atualmente mais de duas dezenas de militares que não possuem formação técnica no campo da saúde. Todos esses desmandos, já frisados anteriormente pelo ministro do STF Gilmar Mendes ao afirmar em live de ISTOÉ que os militares estariam se associando a um genocídio, complicam a situação de Bolsonaro ­— foi Gilmar Mendes, aliás, um dos primeiros a falar em denunciá-lo ao Tribunal Penal Internacional. A denúncia tem seus desdobramentos. A Corte é minuciosamente criteriosa nos julgamentos, o que implica demora em uma resolução. Há quem se manifeste com ceticismo, afirmando que não haverá como configurar crime contra a humanidade. “Até porque é necessário que se comprove a omissão da Justiça brasileira, o que não é o caso porque ela não foi provocada, e se exaure todas as possibilidades jurídicas”, afirma o professor de direito constitucional Clever Vasconcelos. Existe, porém, quem raciocine na direção inversa. “Se eventualmente o Brasil for condenado, pode haver penalidades em ajudas internacionais ou obrigatoriedade de indenizar familiares de vítimas fatais”, diz a professora de direito penal e processual Roselle Soglio, doutora em História da Ciência pela PUC de São Paulo. Para Roselle, a denúncia é importante: ela lembra, por exemplo, que a condenção do Brasil em tribunais internacionais é que levou a elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha no País. Uma consequência traz outra, um desdobramento recai sobre outro. “A denúncia é decorrência de Jair Bolsonaro estar colocando em risco a população em geral”, diz Roselle. “E tanto o Estado brasileiro quanto a pessoa do presidente podem ser responsabilizados”. “A questão não é somente a Corte de Haia”, diz o professor titular de direito público da Faap, Luiz Fernando Prudente do Amaral. “Não é apenas uma denúncia que vai abalar a imagem do Brasil no exterior, mas, sim, o acúmulo de políticas públicas equivocadas”.

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“Tempestade perfeita”

No plano nacional, Bolsonaro começou a ser duramente criticado por uma instituição com a qual qualquer homem público de bom senso quer estar nas nuvens: a Igreja Católica. Ainda que dividida, nem por isso ela deixa de ter forte poder de excomunhão política, como historicamente se vê no Brasil. Desde os tempos da balbúrdia populista e sindicalista da presidência de João Goulart, quando progressistas e conservadores católicos se pronunciavam abertamente a favor ou contra o governo, não se viam essas alas de batina virem a público para exibir discordâncias políticas. Voltou a acontecer agora. Isso é ruim para a Igreja? Pouco, bem pouco, ao final das contas ela sempre se reorganiza em razão de dogmas ou camufla as diferenças. E para Bolsonaro? Aí, sim, é péssimo.

Uma carta com assinaturas de cento e cinquenta e dois bispos e ácidas críticas ao seu governo não se tornara pública até a quinta-feira 30 somente porque a CNBB decidiu “retê-la para melhor análise” — leia-se censura. Entre os que assinam o documento, intitulado “Carta ao Povo de Deus” (nome generalizante, bom para derrubar governos), constam personalidades como o arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio Hummes. O texto enfatiza a péssima performance do capitão diante da pandemia. Com Bolsonaro, diz a carta, o Brasil “vive uma tempestade perfeita”.

Ela aprofundou a divisão na CNBB, que já ocorria desde a eleição de dom Walmor de Oliveira para a presidência da entidade, mas o prejuízo maior é de Bolsonaro. Motivo: por mais progressista que seja um pároco ou por mais conservador que seja um bispo, nenhum deles endossa quem posa de garoto propaganda da cloroquina.

“A condenação do Brasil no exterior levou à elaboração da Lei Maria da Penha. Se o País for condenado agora, poderá ter de indenizar vítimas da Covid-19” Roselle Soglio, doutora em História da Ciência e professora de direito processual e penal


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