CONFLITO Cardeais que elegeram Francisco entram na Capela Sistina; abaixo, o padre Aidan Nichols, detrator do Papa, celebra uma missa em Cambridge (Crédito:AFP PHOTO/OSSERVATORE ROMANO)

O Papa Francisco é um homem ponderado e piedoso. Parece realmente disposto a dedicar seu pontificado aos mais pobres e abandonados. Assim, conquistou grande popularidade internacional. Seu empenho em arejar a Igreja Católica, mudar a visão de costumes e colocá-la no século 21, no entanto, tem encontrado duros obstáculos. Há um enfrentamento entre grupos tradicionalistas e progressistas em torno dele que dá sinais de intensificação. Agora, mais uma vez, o Papa está sob fogo cruzado. E quem incentiva a crise são clérigos ultraconservadores, inconformados com as posições de Francisco em relação a questões morais e de sexualidade. O último ataque partiu de um grupo de 19 padres e teólogos, que, em uma carta aberta ao Colégio dos Bispos Católicos, publicada no site conservador LifeSiteNews no final de abril, acusa o sumo pontífice de heresia, um tipo de delito canônico que remonta à Idade Média. Embora pareça velharia, a virulência da carta perturba. Pede que os bispos católicos investiguem o Papa e o criticam frontalmente por sua tolerância. Basicamente, seus detratores dizem que o Santo Padre fere a doutrina, vai contra os mandamentos da Igreja e precisa ser penalizado. Se fosse em outros tempos, seria como pedir para jogar o Papa na fogueira.

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Os acusadores de Francisco atacam, em especial, a encíclica Amoris Laetitia (A alegria do amor), publicada em 2016 e dedicada às famílias no novo milênio. Nela, Francisco anuncia uma Igreja mais inclusiva, tolerante e menos disposta a condenar os desvios dos fiéis. Propõe também uma Igreja mais flexível, que tenha compaixão pelos seus “membros imperfeitos”, como os divorciados ou as pessoas em segundos casamentos civis. O abaixo-assinado dos conservadores não deve prosperar por conta de inconsistências, mas mostra que o Papa tem inimigos poderosos dentro da Igreja que estão analisando seus atos com lupa antes de deturpá-los. Os detratores de Francisco o acusam de dar proteção ou de ser conivente com bispos e cardeais, que teriam protegido abusadores sexuais ou mesmo cometido abusos. Além do mais, para seus críticos, o Papa não tem se oposto com veemência ao aborto e também tem dado sinais de abertura da Igreja para homossexuais. Outro ponto que incomoda os autores da carta aberta é a aproximação com protestantes e muçulmanos. O Papa elogiou, por exemplo, o reformista Martinho Lutero, por levar a Bíblia às pessoas, e esteve, em fevereiro, em Abu Dabhi, nos Emirados, onde rezou uma missa a céu aberto para 170 mil pessoas em um estádio e fez declarações ecumênicas e pela paz.

A maioria dos clérigos que subscrevem a carta é desconhecida e o único que se destaca é o padre dominicano britânico e teólogo, Aidan Nichols. O grupo, porém, reverbera opiniões de membros da alta cúpula eclesiástica insatisfeitos com a renovação que Francisco está propondo para adaptar a Igreja às necessidades contemporâneas, sem ferir a doutrina e os dogmas. Seu foco está no pensamento religioso que muda com a evolução social e está associado à tradição e à cultura. “Se o que o Papa está propondo – uma igreja mais simples e próxima do povo, for heresia então também sou herético”, afirma dom Jaime Splenger, arcebispo metropolitano de Porto Alegre (RS), que acaba de ser eleito primeiro vice-presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “O Papa é um homem sábio, que se aproxima das pessoas e as linhas de ação que ele propõe vão ao encontro das propostas do evangelho”.

Sínodo da Amazônia

O bispo da diocese de Lages (SC), dom Guilherme Werlang, vai mais longe. “Li o texto e algumas análises. E existem muitos furos na carta publicada. O acusam de heresia por questões que já foram defendidas por Bento 16 e até por Paulo 6. Na doutrina, muitas coisas que ele traz vem dos primeiros séculos da Igreja”, afirma. “Colocam como motivos de heresia coisas que não são matérias de fé. Nos seus ensinamentos não há nada que contrarie algum dogma da fé, mas tão somente questões de costumes”. Se, em outras partes do mundo, o Papa está sendo atacado, no Brasil e na América Latina ele não tem encontrado oposição interna e suas orientações estão sendo respeitadas. “Não conheço nenhum bispo latino-americano que tenha alguma ressalva ao Papa Francisco”, afirma o arcebispo de São Luis (MA), Dom José Belisário da Silva. A CNBB, por exemplo, está plenamente alinhada com o Papa, tanto na ação missionária como na reavaliação de alguma tradições. A Assembléia Geral da CNBB, realizada na semana passada, foi acompanhada de perto por Francisco, que recebia relatórios sobre o andamento dos trabalhos.

O Papa tem atuado fortemente em outra frente progressista e polêmica: a ambiental. Preservar a natureza passou a ser um desígnio divino e Francisco está preocupado com a proteção das florestas e da vida selvagem. Em outubro haverá em Manaus um sínodo (encontro de bispos) extraordinário para tratar dos problemas da região amazônica, que inclui territórios no Brasil e em outros oito países. Quando anunciou esse encontro, no ano passado, o Papa foi criticado por políticos e militares brasileiros. O governo Bolsonaro teme que suas políticas contra a demarcação de terras indígenas e de ataque a ONGs que combatem as mudanças climáticas sejam questionadas durante o encontro. Em fevereiro, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, afirmou que ONGs estrangeiras e chefes de Estado de outros países não devem dar “palpite” na Amazônia brasileira. “O Papa Francisco tem sensibilidade e sabe que a Amazônia tem importância para o mundo”, diz dom Belisário. Com tantos inimigos internos, Bolsonaro, caso venha mesmo a se opor a ele, seria apenas mais um.

“Se o que o Papa propõe — uma Igreja mais simples e próxima do povo — for heresia, então também sou herético” Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre (Crédito:Marco Ankosqu)

A eleição na CNBB

Marco Ankosqui

A Igreja Católica está hoje à esquerda dos evangélicos e do governo brasileiro e deve ter um importante peso político nos próximos tempos, com uma orientação progressista. Na semana passada, a CNBB elegeu seu novo presidente, o arcebispo de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, 65 anos, na 57ª Assembleia Geral do episcopado, realizada em Aparecida (SP). Ele concorreu com o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, e com o arcebispo de Porto Alegre, dom Jaime Spengler. Nascido em Cocos, na Bahia, o novo presidente da CNBB é doutor em Teologia Bíblica. É um homem de diálogo e plenamente afinado com o Papa Francisco. “Nosso olhar deve permanecer voltado para os mais pobres, fortalecendo nossas ações no exercício da caridade, do amor e na busca da Justiça”, disse em uma mensagem divulgada depois da eleição.