RESUMO

• Solução do assassinato de Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes revela um “Estado Paralelo” no Rio de Janeiro
• Ministro da Justiça disse ter radiografia de como milícias e crime organizado se entrelaçam com órgãos públicos e políticos 
• Mas governo não sabe precisar até onde vai a corrupção policial, e vê situação como algo muito preocupante
• Desafio do Planalto é quebrar a cultura de promiscuidade e impunidade entre a política, a milícia e a chamada banda podre da polícia do Rio

 

A conclusão da Polícia Federal sobre o assassinato da ex-vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes foi recebida com alívio e indignação: as investigações respondem a pergunta de seis anos sobre quem mandou matar a vereadora, mas revela também o profundo comprometimento da política e do aparelho policial com o sequestro das instituições por um “Estado paralelo” que se consolidou no Rio de Janeiro.

Segundo a PF:
• a morte de Marielle foi encomendada pelos irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), e pelo deputado federal Chiquinho Brazão.
• O crime foi executado pelo ex-policial militar Ronnie Lessa, motivado por negócios fundiários clandestinos do clã Brazão, planejado e acobertado por um chefe de polícia corrupto, o delegado Rivaldo Barbosa, ex-responsável pela Polícia Civil.
Os detalhes do caso mostram que o aparelho de segurança fluminense, apodrecido e ineficiente, passa por um processo de “mexicanização”, com o agravante de que a violência não é alimentada só pela infiltração, mas também pela ação de grupos da elite política.
• Esses grupos corrompem a polícia, se servem das milícias e de seus pistoleiros de aluguel – todos ex-agentes públicos de segurança – para controlar currais eleitorais e territórios onde desenvolvem negócios imobiliários na esteira da grilagem de terras públicas.

O ministro Gilmar Mendes, do STF, foi no ponto ao avaliar o papel do governo e do Congresso diante do que o caso revela: “É preciso pensar na refundação dessas instituições, tomar as medidas necessárias”.

O ministro lembrou que o envolvimento da polícia com o crime organizado é registrado em várias regiões do País, mas para evitar generalizações fez a ressalva de que nem toda a máquina está comprometida. “Parte da polícia, né? Obviamente isso é algo extremamente grave.”

Ao anunciar as prisões e dar por encerrado o inquérito que apontou os mandantes, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que a investigação é uma radiografia de como operam as milícias e o crime organizado “no entrelaçamento com órgãos públicos e políticos” e o fio de um novelo “cuja dimensão ainda não temos clara”. Mas admitiu: “É algo realmente preocupante”.

A avaliação de Mendes e Lewandowski toca na corrupção policial, um dos principais gargalos da segurança, sobre a qual governo e Congresso, que têm a responsabilidade de apresentar alternativas que depurem as corporações com leis e ações, fizeram cara de paisagem.

O ex-chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa (acima) é preso no domingo (24). Ao lado, movimentação dos agentes e material apreendido levado à sede da corporação no Rio (Crédito:Brenno Carvalho)
(José Lucena)
(Ato Press)

• O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), defendeu a operação, mas disse que “falar mal da polícia, questionar e criticar o tempo inteiro não é um bom caminho”.

• Já o ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, afirmou com todas as letras que a sugestão de Mendes é válida, “mas não está no centro da agenda do governo”.

• O presidente da Associação Nacional dos Delegados Federais (ADPF), Luciano Leiro, acha que o modelo não está errado, mas falta autonomia que evite ingerências políticas, reaparelhamento, recursos humanos e salários decentes. “Não tem bula, nem mágica. São necessários investimentos e a não ingerência política. Um diretor de polícia precisa ter mandato para que a atividade seja separada da política.”

• A Comissão de Constituição e Justiça adiou para a segunda semana de abril o parecer pela manutenção da prisão de Chiquinho Brazão, que assim como o líder do clã, Domingos Brazão, e o delegado Rivaldo Barbosa, foi preso no domingo, 24, depois que a polícia detectou movimentação dele sobre viagem para o exterior.

Outros três envolvidos, a mulher do policial, Érica Araújo, suspeita de lavar as propinas recebidas pelo marido, o delegado que presidiu o inquérito, Giniton Lage, e o comissário de polícia Marco Antônio de Barros Pinto, conhecido por Marquinhos DH, acusados de plantar pistas falsas para dificultar a investigação, vão responder em liberdade, mas tiveram seus passaportes apreendidos, não podem se comunicar com os demais investigados e estão com tornozeleira eletrônica.

Como foi o crime

• Aberta em fevereiro do ano passado, a investigação da PF tem como base a delação do ex-PM Ronnie Lessa, homologada na semana passada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF.
• Com força de um testemunho que poderia desencadear outras delações, Lessa reconstituiu aos federais como executou o crime, no dia 14 de março de 2018.
• Do banco traseiro de um Cobalt prata emparelhado ao carro de Marielle, usando uma submetralhadora, disparou uma rajada de 13 tiros, atingindo a cabeça e o tórax de Marielle e, por ter entrado involuntariamente na alça de mira, o motorista.
A jornalista Fernanda Chaves, que estava no banco do carona e era assessora de imprensa da vereadora, saiu ilesa.
• O ex-policial Élcio Vieira de Queiroz, que dirigia o carro, já havia delatado Ronnie e, portanto, confirma a versão da execução fria e premeditada. Mais tarde os dois se livraram do carro e da arma.

Lessa sustenta que os irmãos Brazão foram os mandantes e conta que a suposta motivação do crime está ligada a uma “descontrolada reação de Chiquinho” diante da atuação de Marielle para mudar o foco de um projeto de regularização fundiária, o que prejudicaria negócios imobiliários do clã na Zona Oeste do Rio.

A vereadora teria percebido que um projeto de Chiquinho, 174/2016, que à época, em novembro de 2017, exercia seu último mandato na Câmara Municipal, favoreceria as milícias e defendeu o uso das terras para moradia popular.

O matador, que a PF define como um “sicário” autor de vários outros homicídios a serviço tanto de contraventores quanto de políticos, afirma que outro ex-policial, o sargento reformado da PM Edmilson da Silva Oliveira, o Macalé, fez a intermediação do assassinato, colocando-o em encontros com os Brazão.

A ministra Anielle Franco (sentada ao centro) em sessão de homenagem à sua irmã na Câmara, na terça-feira (26). Ao lado, o diretor da PF Andrei Passos e o ministro Ricardo Lewandowski no domingo (24) (Crédito:Lula Marques/ Agência Brasil)
(José Cruz/ Agência Brasil)

O ministro Alexandre de Moraes ressalta eu seu despacho que, conforme a delação de Lessa, Macalé mantinha relações próximas com os irmãos Brazão desde o início de 2000, o que foi confirmado pelas diligências da PF, especialmente com Chiquinho, de quem era amigo próximo.

A área pretendida pelos Brazão fica entre os bairros Osvaldo Cruz, Vila Valqueire e Tanque, próximos à Estrada Luiz Souto, onde o clã teria projetado um loteamento de mil terrenos, que, segundo a delação, seria dividido entre os mandantes e a milícia de Lessa e Macalé, meio a meio, “quinhentos deles, quinhentos nossos”.

Cada terreno foi avaliado pelo ex-policial em R$ 100 mil, uma fortuna embora o mais atrativo fossem os perenes serviços que a milícia prestaria à comunidade, atividade que Lessa pretendia assumir.

O assassinato de Marielle e a tentativa de matar a presidente do Salgueiro, Regina Celi, em empreitada que teria sido encomendada pelo contraventor Bernardo Bello no mesmo período, afinal não concluída, seriam os últimos serviços de pistolagem de Ronnie, que queria mudar de vida.

O executor do crime diz que, além de homem de confiança dos Brazão, Macalé já tinha “o domínio político e social” de Osvaldo Cruz.

Na delação ele fala de um primeiro encontro com Domingos e Chiquinho, numa noite de setembro de 2017, portanto nove meses antes do assassinato, no qual foi acertada a contratação, com a exigência de que a execução não ocorresse nas imediações da Câmara de Vereadores.

Foi uma precaução para não caracterizar motivação política, conforme teria orientado o delegado Rivaldo Barbosa, à época diretor da Divisão de Homicídios. Ao confrontar as informações do delator, que falou de um lugar “ermo” nas imediações do antigo Hotel Transamérica, no Bairro da Tijuca, a PF descobriu que o encontro teria ocorrido a mil metros da casa do conselheiro do TCE.

Ação dos brazão

Os detalhes são sórdidos. Lessa diz que “o mais verborrágico da dupla”, Domingos, contou inclusive que, por rivalidades na política, havia infiltrado um informante junto ao PSOL antes mesmo do interesse da dupla pela morte da vereadora, o que resultou no monitoramento de vários parlamentares do partido, entre eles o presidente da Embratur, Marcelo Freixo, hoje filiado ao PT, com quem Marielle havia trabalhado na CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, em 2008.

O homem foi identificado como o miliciano Laerte Silva de Lima que, conta Lessa, exagerava nos relatos, afirmando que nas reuniões com a comunidade Marielle pedia à população para não participar do loteamento em áreas dominadas por milícias, aumentando a ira dos Brazão.

O ex-policial acha que Laerte pode ter “enfeitado o pavão” para valorizar seu serviço de informante, superdimensionando a atuação da vereadora nas áreas de interesse dos Brazão.

O certo é que Laerte se comunicava com outros milicianos, entre eles Robson Calixto, o Peixe, que fez os contatos entre Macalé e Lessa, Marcus Vinícius Reis dos Santos, o Fininho, o ex-major Ronald Pereira, este condenado a 76 anos em 2022 por participação em outros assassinatos, também envolvidos nos levantamentos sobre a rotina da vereadora.

A PF diz que todos eles integravam “uma intrincada teia” com Chiquinho Brandão, o ex-capitão do BOPE Adriano da Nóbrega, morto na Bahia em 2020, e Leandro Gouvêa, o Mad, estes dois últimos controladores da milícia de Rio das Pedras, base do chamado “Escritório do Crime”, um antro de pistolagem misturado à gestão dos serviços clandestinos à comunidade e curral eleitoral dos Brazão.

Loteamento e milícias

Na versão do delator, os irmãos justificaram a encomenda do crime sob o argumento de que Marielle era um obstáculo ao loteamento e aos negócios gerais das milícias e encaminhava sua atuação parlamentar para áreas de influência política e de negócios deles.

Um dia antes do crime o delegado Rivaldo assumiu a chefia da Polícia Civil, nomeado por influência dos Brazão pelo general Richard Nunes com base numa lista do Comando Militar Leste elaborada pelo então chefe da fracassada intervenção federal na segurança do Rio, general Braga Netto, ex-ministro e ex-candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022.

A PF diz que Rivaldo participou tanto do planejamento quanto do acobertamento do crime, conduzindo a investigação para linhas opostas às que implicavam Domingos e Chiquinho. Na última reunião com a dupla, em abril de 2018, diante da repercussão do crime, Lessa disse ter ouvido dos mandantes que ficasse tranquilo porque Rivaldo “ia dar um jeito”. O caso ficou no limbo por seis anos, até que a PF entrou, com o objetivo pontual de encontrar provas sobre os mandantes.

Quebra-cabeça sem peças

O problema das investigações da PF é que o suposto intermediário entre mandantes e executores, Macalé, foi assassinado em novembro de 2021, em Bangu, Zona Oeste do Rio, em circunstâncias que levam à suspeição de queima de arquivo.

• Nem a Polícia Civil e nem a PF esclareceram como foi morta a testemunha-chave que poderia corroborar as delações de Élcio Queiroz.

• O elo mais forte de corroboração apontando a motivação e o suposto envolvimento dos Brazão é, por enquanto, o delegado Rivaldo.

A família de Marielle diz que no dia seguinte ao crime ele afirmou que o esclarecimento do caso era prioridade da polícia e, para ele, uma questão de honra pela suposta amizade que tinha com a vítima. Era apenas dissimulação.

O ministro Ricardo Lewandowski fez questão de sublinhar que a conclusão do inquérito foi um “triunfo expressivo do Estado brasileiro contra a criminalidade organizada”, etapa vencida, segundo frisou, com a posse do presidente Lula. Foi um jeito de dizer que durante o governo Bolsonaro, de notórias relações com as milícias, o caso ficou engavetado, sem iniciativa federal que quebrasse a paralisia das gestões de Wilson Witzel e de seu sucessor, o atual governador Claudio de Castro (PL).

Bolsonaro e Castro têm estreitas ligações com os irmãos Brazão, com os quais ambos subiram em palanque durante a campanha de 2022, em regiões controladas pelas milícias, como Rio das Pedras.

Lessa morou no mesmo condomínio do ex-presidente, o Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca. Em 2005, por orientação do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro, o 01, à época deputado estadual, condecorou o miliciano e ex-capitão do BOPE Adriano Nóbrega com a medalha Tiradentes. Quando o ex-policial foi morto na Bahia, em fevereiro de 2020, Bolsonaro deu declarações afirmando que o ex-capitão era “herói da PM”.

Adriano é citado no inquérito da PF por Lessa, que admite ter abandonado a região de Rio das Pedras por medo do ex-capitão, que dominava o crime e os votos da região.

A mãe, Raimunda, e a primeira mulher do ex-policial, Danielle, foram contratadas no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio e, como todos os que participaram do esquema da rachadinha, devolviam parte de seus salários ao gabinete.

As investigações não apontam, no entanto, relação entre a morte de Marielle com os Bolsonaro. O desafio do governo federal é quebrar a cultura de promiscuidade e impunidade entre a política, milícia e a chamada banda podre da polícia do Rio.

É um cenário moralmente tão caótico que contribuiu, nas últimas duas décadas, para a prisão de quatro governadores do Rio: Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Anthony Garotinho e a mulher deste, Rosinha Garotinho.

A maldição também levou para a cadeia, além do delegado Rivaldo Barbosa, outros três chefes de polícia do Rio: Álvaro Lins e Ricardo Hallack, em 2008, e Allan Turnowski, em 2022, todos eles acusados de envolvimento com o crime. Já era a crônica anunciada do que a PF descobriu ao identificar a rede dos Brazão.

O risco da “mexicanização”
Apesar da ação bem-sucedida da Polícia Federal, a ameaça de o País viver uma situação parecida com a de outros países da América Latina é real

O desfecho do caso Marielle evidencia o espantoso grau de infiltração do crime organizado nas instituições de Estado. Três influentes autoridades estaduais foram presas por mandarem assassinar uma política em ascensão que “atrapalhava” suas milionárias atividades ilícitas. O crime foi executado por um ex-PM, com a participação direta do chefe da Polícia Civil – o quarto titular da corporação preso desde 2008 – no estado que também teve cinco governadores ou ex-governadores presos entre 2016 e 2019. E este mesmo chefe de polícia foi nomeado por um general quatro estrelas do Exército, no período em que uma operação militar de garantia da ordem foi convocada para reverter a perda de controle das forças de segurança sobre a criminalidade. É o retrato da falência.

O México é um exemplo de como órgãos de Segurança Pública, setores da Justiça e parte da classe política são vulneráveis ao poder de cartéis poderosos. Nesse caso, são grupos ligados ao narcotráfico, mas rapidamente as atividades criminosas se expandiram. Lá, até o preço de frutas e legumes é impactado pela criminalidade. Estudos mostram que o crime é quinto maior empregador do país. A Colômbia exportou o modelo dos cartéis para o México e até hoje é ameaçada por narcoguerrilhas. Em janeiro, o Equador foi palco de um derretimento institucional ao vivo: gangues invadiram um estúdio de TV e sequestraram jornalistas no ar, em plena campanha eleitoral, após um candidato presidencial ser executado.

No caso brasileiro, há uma particularidade: o fato de as milícias terem sido criadas à luz do dia por policiais e serem saudadas e condecoradas por políticos, inclusive de uma ex-família presidencial. Esses grupos já rivalizam com outra criação brasileira, as megafacções criminosas, que expandem seus negócios internacionais depois de fincar raízes na região amazônica.

No Brasil, espetáculos tétricos que viraram cotidianos no México, como a exposição de corpos esquartejados, atentados com explosivos e chacinas coletivas ainda não viraram rotina — mas o País está perto disso. Já entrou na era das execuções políticas de grande repercussão (sem tanta comoção, mais de 20 políticos foram mortos no Rio nos últimos 20 anos).

O caso Marielle, por outro lado, também traz um alento. Mostra que a força política garantida pela democracia ainda vale.

A ação da Polícia Federal foi decisiva para driblar a pressão do Estado paralelo. Porém, a escandalosa decisão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara que adiou a decisão sobre a autorização para a prisão do mandante parlamentar, sob o argumento de que a ação foi “apressada”, lembra que o trabalho de limpeza institucional mal arranhou a superfície do problema.