Entenda o marco temporal das terras indígenas, aprovado pelo Senado

Senadores aprovaram proposta de emenda constitucional para incluir regra que limitaria demarcações de terras indígenas às ocupadas por eles no dia em que a Constituição foi promulgada.

Entenda o marco temporal das terras indígenas, aprovado pelo Senado

O Senado aprovou nesta terça-feira (09/12) uma proposta de emenda constitucional (PEC) que ficou conhecida como marco temporal, que estabeleceria uma nova regra para a demarcação de terras indígenas.

A tese do marco temporal estipulava que os povos indígenas teriam direito a reivindicar em processos de demarcação somente as terras que estivessem ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

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A PEC 48/2023 ratifica os termos do marco temporal, tema da Lei 14.701, de 2023. Ela foi aprovada em dois turnos com 52 votos favoráveis, 15 contrários e uma abstenção. Antes de virar lei, ela ainda precisa ser analisada na Câmara dos Deputados e sancionada pelo presidente.

Defensores da proposta afirmam que ela garante segurança jurídica sobre a questão e reduz a proprietários o risco de reinvindicação de terras. Críticos, porém, argumentam que a medida ignora o histórico de perseguição a indígenas, que muitas vezes são expulsos de suas terras.

A proposta, que visa incluir o marco temporal na Constituição, define como terras ocupadas por povos indígenas “as habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

A PEC foi apresentada em setembro de 2023, depois de a tese do marco temporal ter sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), naquele mesmo mês. Com a proposta para mudar a Constituição, os parlamentares que defendem essa mudança tentam contornar esse entendimento.

A votação no Senado ocorreu um dia antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) começar a julgar quatro ações que questionam a constitucionalidade do marco temporal.

Julgamento no STF

Em maio de 2023, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei (PL) 490/2007, sobre o marco temporal, que criava novas regras para a demarcação de terras indígenas. Em setembro daquele ano, o texto foi aprovado pelo Senado.

De acordo com a proposta, no futuro poderiam ser demarcadas apenas terras indígenas que estivessem tradicionalmente ocupadas por esses povos na data da promulgação da Constituição. O texto também retirava a demarcação de terras da alçada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e devolvia a atribuição ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os indígenas são contra a proposta.

Os ruralistas, que defendem a aprovação do PL, argumentam que o marco temporal daria maior segurança jurídica contra desapropriações de suas propriedades e para o agronegócio.

Após o Senado aprovar a tese, no mesmo mês, o STF derrubou o marco temporal, com nove dos onze ministros votando contra a tese. O julgamento do tema discutiu o caso concreto de uma terra indígena em Santa Catarina, mas tem repercussão geral e o veredito passou a valer para casos semelhantes.

Com a decisão, o governo vetou o trecho da lei do marco tempo. O Congresso, porém, desafiou o STF, derrubou o veto e a tese virou lei em outubro de 2023

O que diz a PEC

De acordo com a Constituição Federal, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” A Constituição, no entanto, não determina nenhuma data como marco temporal.

A PEC 48/2023 altera a Constituição e inclui a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, definido que só poderão ser reivindicadas áreas que “que estavam sob posse indígena em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição”.

O autor alega que a mudança “pode proporcionar maior estabilidade e previsibilidade em relação ao uso e ocupação de terras, impactando investimentos e atividades econômicas”, além de trazer clareza e segurança no processo jurídico e gerar debates sobre os “direitos dos povos indígenas e a gestão territorial no Brasil”.

A proposta aprovada acrescentou ainda dispositivos que garantem indenização prévia aos ocupantes regulares de terras que serão demarcadas.

Argumentos contra o marco temporal

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a adoção do marco temporal limitaria o acesso dos indígenas ao seu direito originário sobre suas terras e que há casos de povos que foram expulsos delas algumas décadas antes da entrada em vigor da Constituição.

“O direito de povos indígenas a seus territórios não começa e nem termina em uma data arbitrária”, justifica Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil. “Aprovar esse projeto de lei seria um retrocesso inconcebível, violaria os direitos humanos e sinalizaria que o Brasil não está honrando seu compromisso de defender aqueles que comprovadamente melhor protegem nossas florestas”.

Na avaliação do Ministério dos Povos Indígenas, a tese pode “inviabilizar demarcações de terras indígenas, ameaçar os territórios já homologados e destituir direitos constitucionais, configurando-se como uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil na atualidade”.

Em 2022, os protestos contra o marco temporal também reverberam no exterior. Em abril do ano passado, um grupo de 29 parlamentares alemães enviou uma carta aberta aos membros do Congresso brasileiro expressando preocupação com o PL 490/2007.

Julgamento no STF

O caso em julgamento no STF tratava da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama , em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani.

O estado de Santa Catarina argumenta que na data de promulgação da Constituição não havia ocupação na área. Por outro lado, indígenas argumentam que, naquela ocasião, haviam sido expulsos do local.

O procurador-geral do Estado de Santa Catarina, Márcio Vicari, defende o marco temporal e diz que a realidade de Santa Catarina é diferente da de outras unidades federativas. “Há localidades em que a demarcação envolve um latifúndio de um único proprietário, mas, no nosso estado, isso impacta na realidade de centenas de famílias, muitas delas de produtores rurais”, afirmou, em audiência na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc).

Na época do início do julgamento do STF em 2021, cerca de 6 mil indígenas de 170 povos acamparam em Brasília, em uma área da Esplanada dos Ministérios, para protestar por seus direitos e contra o marco temporal.

A origem da questão

Toda a questão teve origem em 2009, quando um conflito entre indígenas e agricultores em Roraima chegou ao STF. Para resolver a disputa sobre a quem pertenceria de direito a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os ministros argumentaram em favor do povo indígena — alegando que eles lá estavam quando foi promulgada a Constituição.

Se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação em contrário: ou seja, que indígenas não pudessem reivindicar como suas as terras que não estivessem ocupando em 1988.

Em 2017, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer de que seria pertinente a tese do marco temporal. Como resultado, há dezenas de processos de demarcação de terra emperrados, à espera de uma definição do STF. Entre eles, o caso dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, que volta a julgamento no STF.

Historicamente perseguidos pelos colonizadores, os remanescentes da etnia acabaram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, contudo, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares — que depois se expandiria, em 2003, para 37 mil hectares. Com o argumento do marco temporal, agora a área é reivindicada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina.

(DW, EBC, ots)