RESUMO

• Anistia a Bolsonaro é a grande pauta da extrema-direita até fevereiro do ano que vem
• Arthur Lira pode ajudar os bolsonaristas desde que eles apoiem seu candidato à sucessão na Câmara
• Lira já orientou a assessoria legislativa a desengavetar dois projetos que propõem o fim da delação a investigados ou réus presos
• Ao tentar limitar a delação a acusados em liberdade, a Câmara quer anular as revelações do tenente-coronel Mauro Cid para facilitar a vida de Bolsonaro
• PF e o Ministério Público perderiam a mais importante ferramenta legal regulamentada nos últimos 11 anos
• Isso implodiria o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

O ex-presidente Jair Bolsonaro não está satisfeito em poder circular por aí livre e solto depois de ter tentado golpear a democracia. Ele quer bem mais e, sem o menor constrangimento, articula uma dupla anistia que o livre dos crimes praticados durante o mandato e limpe sua ficha para que possa concorrer em 2026. Com o apoio da extrema-direita reunida em torno do PL, o maior partido na Câmara, comanda a ofensiva que mira o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assustar o Supremo Tribunal Federal (STF). Com o cerco da Polícia Federal e Ministério Público Federal se fechando, Bolsonaro, que há tempos abriu mão da defesa técnica para politizar seu caso, recorreu à sua tropa de choque no Congresso.

● Na semana passada coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado dele nas eleições de 2022, a iniciativa de colocar na pauta a estranha proposta de revisão da colaboração premiada (lei 12.850/2013) para tentar anular a delação do tenente-coronel Mauro Cid, o ex-Ajudante de Ordens do Palácio do Planalto cuja confissão escancarou o plano de Bolsonaro para invalidar o resultado do segundo turno da eleição de 2022, com o uso inclusive das Forças Especiais do Exército para prender o ministro Alexandre de Moraes e dar um golpe de Estado.

● A mudança na delação está conectada a dois projetos que tramitam no Congresso, um do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e outro sob a relatoria do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), indicado pela presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Caroline de Toni (PL-SC), que já assumiu o cargo no início de março com o compromisso de colocar na pauta a anistia dos presos pelo 8 de janeiro.

A finalidade, claro, é livrar seu “mito” dos mesmos crimes (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado) atribuídos ao bando que vandalizou os prédios do STF, Palácio do Planalto e Congresso.

Entenda a manobra que os radicais articulam para anistiar Bolsonaro
Lira pode ajudar os bolsonaristas desde que eles apoiem seu candidato à sucessão na Câmara (Crédito:Zeca Ribeiro)

O problema é que o passivo de Bolsonaro só aumenta.

• Uma investigação conjunta entre a PF e o FBI (a polícia federal dos Estados Unidos), descobriu que mais joias doadas ao Estado brasileiro pelo governo saudita foram retiradas do acervo público para, bem ao estilo do ex-presidente, fazer dinheiro vivo.

• O diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, afirmou que a descoberta reforça investigações e aprofunda o envolvimento de Bolsonaro, que será indiciado em mais um caso, pela reiterada prática de peculato, um crime punível com pena de 2 a 12 anos de detenção.

• As joias desapareceram, o que impediu que os investigadores esclarecessem se foram vendidas ou não. A nova acusação tem um ingrediente muito feio para o ex-presidente: elas foram levadas para Orlando no dia 30 de outubro de 2022 no avião presidencial, data em que Bolsonaro, a pretexto de não passar a faixa presidencial a Lula, fugiu do país para não ser preso pela tentativa de golpe, mas levando na bagagem um valioso butim para ser convertido em dólares, longe dos controles.

Entenda a manobra que os radicais articulam para anistiar Bolsonaro
Os aliados de Bolsonaro querem enterrar a delação premiada do coronel Mauro Cid que incrimina o ex-presidente (Crédito:Lula Marques/ Agência Brasil)

Obsessão

Uma obsessão de Bolsonaro, a anistia, é a grande pauta da extrema-direita até fevereiro do ano que vem, quando o tema deverá entrar com força na campanha para sucessão de Lira e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD- MG). Com peso na disputa, parlamentares do PL prometem que levarão os votos do partido aos candidatos que se perfilarem ao lado de Bolsonaro no conflito com o STF.

Os bolsonaristas sondam os favoritos, ambos do União Brasil, Elmar Nascimento (BA) – o candidato de Lira para a Câmara –, e Davi Alcolumbre (PA) – apoiado por Pacheco para o Senado –, que até agora, pelo menos em público, não fizeram promessas. Um deputado do PL, que pediu anonimato, disse que a decisão do partido deve ser em bloco e por nomes que se comprometam em levar para a pauta do Senado o impeachment de um ministro do STF, preferencialmente Alexandre de Moraes, o “terror” de Bolsonaro.

• O primeiro deles, de 2016, é do petista Wadih Damous, atual Secretário Nacional do Consumidor que, para tentar defender Lula das acusações que pipocavam na Lava Jato, resultado da delação do ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro, preso em Curitiba à época, prevê a delação apenas para acusados em liberdade e responsabiliza criminalmente quem divulgar o conteúdo dos depoimentos. Levada ao pé da letra, a proposta vincula jornalistas e veículos de comunicação ao mesmo sigilo imposto a quem exerce cargo público.
 O segundo projeto é de um aliado do governo e de Lira, o deputado Luciano Amaral, do PV de Alagoas, partido que participa da federação com o PT e que tem proposta semelhante à de Damous. Caso vingue, a proposta mudaria radicalmente a lei das organizações criminosas, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2013 e que regulamentou a delação como a mais importante ferramenta legal para punir a roubalheira na política e no crime organizado.

Ao tentar limitar a delação a acusados em liberdade, a Câmara quer anular as revelações de Cid para facilitar a vida de Bolsonaro, mas também fere de morte casos de homicídio, como o que envolve Ronnie Lessa, o ex-militar e assassino confesso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Pela delação dele soube-se que os suspeitos de encomendar o crime são os irmãos Brazão – o deputado Chiquinho Brazão, e o conselheiro do Tribunal de Contas, Domingos Brazão.

Impunidade

O procurador de Justiça de São Paulo, Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, disse à ISTOÉ que as duas propostas são discriminatórias, inconstitucionais, ferem a isonomia dos acusados e representam apenas uma tentativa de acomodação dos interesses dos grupos políticos que não querem os órgãos de controle combatendo os malfeitos.

“É mais um ato do negacionismo da corrupção com o objetivo de obstruir os caminhos processuais. Se o réu solto pode fazer acordo, por que o preso não pode? Ninguém será condenado apenas com base na delação. O projeto não tem coisa boa. Ele se soma a iniciativas que enfraqueceram as leis da improbidade, da ficha limpa e às ameaças contra o Ministério Público. Por esse caminho, o Brasil vai se consolidando como o país da impunidade. É mais um capítulo do show de horrores da corrupção.”

Livianu alerta que a proibição de divulgação do conteúdo das delações, com pena de detenção de 1 a 4 anos, é um grave atentado à liberdade de imprensa.

“Sem a possibilidade da delação, o Brasil vai se consolidando como o país da impunidade.”
Roberto Livianu, procurador de Justiça de São Paulo

Entenda a manobra que os radicais articulam para anistiar Bolsonaro
A proposta de Damous serviu para proteger Lula no passado e agora pode ajudar Bolsonaro (Crédito:Tânia Rêgo)

O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) sustenta que essa pauta não é do governo, mas o próprio PT, que sofreu forte desgaste com as delações feitas no caso Petrobras, está dividido, embora também não tenha interesse em ajudar a anistiar os golpistas que tentaram a ruptura logo depois da vitória de Lula.

A pedido do Ministério da Justiça, a Polícia Federal está fazendo uma análise e entregará um parecer ao governo sobre os efeitos da delação nos últimos 11 anos. A anulação do instituto seria, segundo especialistas, uma medida corporativa de proteção para os próprios políticos caso o combate a corrupção, abandonado desde o governo de Michel Temer, ressurja em algum momento. Mesmo que fosse apenas para fazer ajustes à lei, uma eventual mudança como querem os deputados seria um retrocesso às investigações.

O instituto é uma prerrogativa do preso, mas também poder de polícia do Estado para esclarecer crimes. A Polícia Federal e o Ministério Público perderiam a mais importante ferramenta legal regulamentada nos últimos 11 anos. Os acordos de delação foram o coração da Operação Lava Jato, que acabou desmoralizada e teve seu fim decretado quando o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União Brasil-PR), depois de prender Lula, aliou-se a Bolsonaro tendo aceitado o cargo de ministro da Justiça. A motivação política, que ficou evidente com a entrada do então juiz no governo de extrema-direita, interrompeu o combate da corrupção.

Entenda a manobra que os radicais articulam para anistiar Bolsonaro
O deputado Rodrigo Valadares deve ser o relator o projeto que prevê dar anistia aos condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro (Crédito:Marcos Oliveira)

A busca da anistia motiva também a elevação da temperatura política no Congresso, o tom beligerante da extrema-direita e a reação em bloco de 163 réus condenados ou em fase de julgamento pelos atos do 8 de janeiro. Eles arrancaram as tornozeleiras eletrônicas impostas pelo ministro Alexandre de Moraes como medida cautelar na concessão de liberdade e se “asilaram” na Argentina alegando perseguição política no Brasil.

Pelo menos 65 deles já entraram com pedidos de refúgio, o que poderá levar o governo Javier Milei, de extrema-direita e um aliado de Bolsonaro no continente, a abrir um conflito diplomático com o Brasil, caso aceite a tese de que os foragidos são perseguidos políticos. O pedido feito ao Conselho Nacional de Refugiados (Conare) impede a repatriação imediata dos foragidos, já que a simples formalização do ato dá ao autor pelo menos três meses de status de refugiado, o que obrigará a Justiça dos dois países a esclarecer a situação legal de cada foragido.

A meta do bolsonarismo é criar mais um foro internacional de desgaste do STF e aproveitar o longo espaço de tempo entre as investigações e uma sentença definitiva do Supremo para reorganizar suas estratégias e focar suas ações no desgaste do judiciário e executivo no Congresso, com pautas-bomba como a da delação.

O movimento é estratégico, como ficou evidente na articulação de Hamilton Mourão, que, na terça-feira, 11, fez uma postagem no X (ex-Twitter), pedindo que o governo daquele país conceda refúgio.

O ex-vice-presidente afirmou que os condenados e investigados não confiam mais na Justiça, foram sentenciados a penas desproporcionais aos delitos e que o esforço do STF para prendê-los mostra “o viés autoritário e persecutório da esquerda no poder”. Mourão também coordena uma enquete online para avaliar o projeto de anistia, que sob a relatoria do senador Humberto Costa (PT-PE), tem chances mínimas de ser aprovada.

General do Exército, o senador representa a ala menos aloprada do bolsonarismo, mas demonstra reflexão convenientemente seletiva: ele ignora que foram seus colegas de farda, ex-comandantes militares, que detalharam em depoimentos o plano golpista posto em curso intensamente nos dois meses seguintes à eleição e que terminou nos ataques do 8 de janeiro.