A Venezuela aprovou no domingo, 3, um referendo para a incorporação do estado do Essequibo, região que pertence à Guiana, mas é reivindicada há ao menos um século pelo país agora governado por Nicolás Maduro. De acordo com as autoridades venezuelanas, 95% dos votos foram a favor das medidas de anexação do território, apesar do comparecimento de apenas metade dos eleitores.

Entretanto, apesar das tentativas do governo venezuelano de adquirir o território, a Corte Internacional de Justiça decidiu de forma unânime que o país não possui nenhuma permissão para incorporar o Essequibo. Mesmo com a determinação, o regime de Caracas afirmou que seguirá fiel à posição histórica, não reconhecendo a jurisdição do tribunal em relação a essa controvérsia.

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O que é o Essequibo?

O Essequibo é um território que possui uma área de 160 mil quilômetros quadrados, sendo maior do que a Inglaterra, correspondendo a 75% de toda a região administrada pelo governo da Guiana.

O terreno é disputado pelos dois países desde o século XIX, quando as regiões hoje administradas por Venezuela e Guiana ainda eram colônias de potências europeias, sendo elas a Espanha e o Reino Unido, respectivamente. No ano de 1966, quando a Guiana se tornou independente, foi realizada a convenção de Genebra, que determinou que as duas nações deveriam integrar uma comissão para resolver a questão da fronteira.

O professor e cientista político da USP Rafael Villa explica que apesar de já haver uma disputa antiga entre os dois países, a controvérsia tomou um caráter de exploração de recursos naturais, após a descoberta de combustíveis fósseis na área do Essequibo. “Entre 2014 e 2015, companhias estrangeiras descobriram uma grande quantidade de petróleo considerado internacionalmente como um de grande qualidade, diferente do categorizado como pesado, que é encontrado na Venezuela.”

Leandro Consentino, cientista político do Insper, afirma que a Guiana é um país novo no cenário internacional e ainda dependente de recursos exportadores, fato que fez com que a economia tivesse um impulso, que de acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), teve o maior crescimento econômico do mundo em 2022, com um avanço de 62,3% no PIB após o início das explorações de petróleo no Essequibo.

Existe chance de guerra?

“Já havia uma contestação no passado que já parecia pacificada, mas está reacendendo por motivos políticos internos e econômicos”, conclui Leandro Consentino, complementando que o resultado do referendo realizado pelo governo de Nicolás Maduro pode ser difícil de se obter completamente por meios pacíficos. “Uma escalada militar é pouco provável por conta da desestabilização que causaria na região. Acho que não teremos um conflito armado e nem uma vitória total da Venezuela.”

Durante a manhã da terça-feira, 5, Nicolás Maduro determinou a criação do estado da Guayana Esequiba e ordenou que a PDVSA (Petróleos de Venezuela SA) concedesse licenças para a exploração dos combustíveis fósseis na região. Recurso que atualmente é aproveitado por empresas americanas como a ExxonMobil.

Entretanto, o cientista político Rafael Villa esclarece que o governo venezuelano não irá além do discurso, já que a formalização da posse do Essequibo envolve uma invasão que não é desejada, relatando que até do ponto de vista geográfico seria custoso atravessar a selva que está presente na fronteira entre os dois países.

“Nas condições em que a Venezuela está atualmente, de crises econômicas e sociais, a última coisa que esperam é uma guerra, que gastaria muitos recursos”, explica o professor da USP, finalizando que a sociedade não teria intenções de empreender em um conflito armado e que a principal guerra da Venezuela é contra a miséria.

Mesmo com as poucas chances de um conflito militar no território, o Ministério da Defesa do Brasil reforçou as fronteiras do estado de Roraima, que faz fronteira com os dois países e, segundo os militares, poderia ser utilizada no caso de uma invasão por terra da Venezuela à Guiana. A primeira Brigada de Infantaria de Selva, composta por dois mil soldados, intensificou a presença para tarefas de vigilância.

Essequibo usado como manobra política

No mês de outubro deste ano, as sanções aplicadas pelos Estados Unidos contra o petróleo venezuelano foram suspensas temporariamente, já que os países teriam obtido um acordo em que eleições livres seriam realizadas entre o governo de Maduro e a oposição no ano de 2024. Nesta quinta-feira, 7, o governo americano anunciou que aviões do exército irão sobrevoar o Essequibo para conduzirem exercícios militares.

Rafael Villa complementa que por ser uma questão muito presente na sociedade venezuelana, Nicolás Maduro pode ter se utilizado da controvérsia para angariar apoio ao atual governo. O cientista político compara este ato de Caracas com o realizado pela ditadura que governava a Argentina durante a Guerra das Malvinas, em 1982. “Até mesmo a oposição, que já tentou derrubar o chefe de estado, não se opôs ao referendo, porque Maduro conseguiu mobilizar o nacionalismo que estava adormecido.”

 

Mapa publicado por Nicolás Maduro nas redes sociais que mostra a Venezuela com o Essequibo

O professor do Insper Leandro Consentino explica que a questão do Essequibo pode mudar a forma como os países do que é considerado como o Ocidente enxergam a Venezuela. “O fato de existirem interesses norte-americanos no território coloca preocupação nos Estados Unidos, já que um país conhecido como aliado de Rússia e China estaria interferindo na estabilidade de uma região costumeiramente pacífica.”

O cientista político da USP afirma que as medidas econômicas punitivas só voltariam a ser impostas em caso de uma invasão ou se Maduro descumprisse o acordo feito entre os Estados Unidos e a oposição política de Caracas. “A necessidade do petróleo venezuelano para os norte-americanos e europeus faz com que eles ajam de forma pragmática, mesmo com a baixa capacidade produtiva da Venezuela”, relatando que atualmente a Guiana não teria tal capacidade para fornecer combustíveis fósseis às potências ocidentais, que sentem falta da oferta desses recursos que eram disponibilizados pela Rússia.

O que pensa a Guiana?

“O referendo tem uma certa legitimidade, independente dos números, que nunca ficam muito claros na Venezuela, ele conseguiu apoio da sociedade e da classe política”, conclui Rafael Villa, ressaltando que a opinião da Guiana e da população que vive na região é totalmente contrária à votação conduzida pelo governo de Caracas.

A Guiana é governada por Irfaan Ali, do Partido Popular Progressista, chefe de estado desde agosto de 2020, sendo o décimo presidente da república. O país já teria entrado em contato com órgãos internacionais para preservar a integridade das próprias fronteiras, já que o seu poderio militar consiste em apenas três mil soldados. Em entrevista à CNN Brasil, o líder da ex-colônia britânica afirmou que Nicolás Maduro é “imprevisível” e que as atitudes de Caracas são “preocupantes”.

Rafael Villa explica que a população que vive no território antes administrado pelos britânicos envolve negros vindos do caribe e de outras colônias inglesas. “Houve muita migração da Índia e de Bangladesh, tanto que já se formaram partidos políticos identificados como hindus ou muçulmanos. Culturalmente, se pode destacar que a sociedade criou uma própria identidade diferente da hispânica, da Venezuela.”

O professor Leandro Consentino ressalta que se o Essequibo fosse perdido para a Venezuela, a tendência seria inviabilizar o pleno funcionamento do país. “Ainda haveria uma ameaça constante de que o restante do território seria anexado de alguma forma”, o que o outro especialista, Rafael Villa considera como uma “mutilação”, mesmo que não haja tantas pessoas vivendo no território, que conta com uma população de 120 mil pessoas.

O governo brasileiro afirmou que segue a postura histórica das relações exteriores do país, buscando mediar a situação e evitar que ocorra qualquer tipo de conflito armado entre o governo de Maduro e a ex-colônia britânica. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou que fará uma viagem à Guiana em 2024. “Espero que o bom senso prevaleça”, afirmou o chefe de estado durante a visita realizada no Oriente Médio.

**Estagiário sob supervisão