A principal atração do palco Sunset do Rock In Rio 2017, no dia 22 de setembro, vai escrever um capítulo na história do festival. O cantor Ney Matogrosso vai se juntar ao grupo Nação Zumbi para cantar um repertório intercalado: músicas dos pernambucanos seguidores de Chico Science, morto em 1997, e outras do grupo Secos e Molhados, trio que concebeu uma das linguagens mais inovadoras defendidas por Ney, Gerson Conrad e João Ricardo entre 1971 e 1974.

Os ensaios já começaram e o jornal “O Estado de S. Paulo” esteve no primeiro deles, na tarde da última terça-feira, 7, nos estúdios da Red Bull Station, no centro de São Paulo. Ney dividia vozes com Jorge Du Peixe, vocalista da Nação, sobre uma base que já havia sido gravada pelo Nação horas antes. Eles passavam alguns takes de Amor, música que estava no primeiro álbum do grupo, de 1973, um poema de João Apolinário musicado por seu filho, João Ricardo. O repertório ainda está em formação, mas Du Peixe antecipou o que deve entrar de Secos e Molhados: Sangue Latino, Assim Assado, O Patrão Nosso de Cada Dia e Rosa de Hiroshima estão em um primeiro esboço.

A força do encontro, além de unir duas expressões complementares pela energia cênica de Ney e pelo peso da Nação, está em dois ineditismos: um na parceria e outro em uma decisão. Desde a dissolução do grupo, em 1974, Ney nunca havia feito um show só com o repertório do Secos e Molhados. O episódio final de um conjunto que vivia um momento de glória, quebrando recordes nas vendagens de seu primeiro disco, foi traumático. Ney chegou a ser chamado anos mais tarde para refazer o repertório dos dois discos deixados pela banda, mas sempre se recusou.

Agora, talvez por obra do tempo, foi Ney quem deu a ideia de usar sua passagem pelo Sunset para revisitar o repertório da banda. Quem estava com ele no momento da decisão é Zé Ricardo, músico, compositor e diretor artístico do palco Sunset. “Fomos almoçar, começamos a falar do que poderíamos fazer para o repertório e Ney soltou essa: ‘E por que não fazemos só Secos e Molhados?'”, lembrou, com entusiasmo. “Eu sempre quis trazer Ney para o Sunset, é um artista que sai de si mesmo quando está no palco e essa é justamente a proposta do espaço, tirar o músico de sua zona de conforto.” Mesmo com todo o valor que o encontro pode ter, há uma limitação de festival. Ele não pode passar de uma hora de duração. “Claro que dá vontade de fazer mais.”

Ney falou com o jronal depois dos ensaios de Amor. Tocar com a Nação, ele diz, era um projeto desde a concepção de Atento aos Sinais, álbum de Ney que já está sendo apresentado no palco há cinco anos. “Nós nos vimos primeiro em um programa do Serginho Groisman. Fiquei olhando, vendo como eles tocavam, e pensando em como poderia ser se nos apresentássemos juntos.” O curioso foi que alguns músicos da Nação tiveram a mesma ideia. Ney se movimentou primeiro e fez o convite, mas chegou tarde.

Marisa Monte sairia em turnê do disco Verdade, Uma Ilusão com o dínamo do motor da Nação, o baixista Dengue, o baterista Pupilo e o guitarrista Lucio Maia. “Eles pediram para eu esperar por três meses até acabar a turnê de Marisa, mas eu sabia que ela não iria sair do palco em três meses”, afirma Ney.

Nação e Ney seguiram seus caminhos, até que veio o convite de Zé Ricardo. “Eu me vejo no que eles fazem”, considera Ney. “Eu herdei o primeiro disco do Secos e Molhados de meu irmão. Ney é importante para o grupo, tem uma expressão única”, diz Jorge Du Peixe. Questionado sobre onde acha que a Nação pode contribuir na música já tão bem formatada do Secos, ele comenta: “É na psicodelia deles que entra a Nação. Vai ser um desafio, não sabemos o que pode acontecer no estúdio”.

Os traumas de 1974 parecem ser passado. Aquela foi uma época conturbada. Os jornais guardam matérias que narram uma das dissoluções mais turbulentas da música brasileira moderna. João Ricardo era uma espécie de líder do grupo. Concebeu a proposta e musicou poemas do pai João Apolinário para, logo depois, chamar Gerson Conrad e Ney Matogrosso para darem forma às ideias. O sucesso absurdo de um grupo que lotava o Maracanãzinho, colocando 30 mil pessoas nas arquibancadas e deixando 90 mil para fora, e que vendia mais de 700 mil cópias de um disco, não poderia mais ser considerado modismo. Ney, rompendo com os comportamentos de palco, se transformava em um animal que os militares não sabiam como domesticar. Se rebolasse quatro vezes, pediam que diminuísse para três. Chico Buarque e Aldir Blanc ouviram agentes jurando que ele seria “o próximo torturado da lista”. Mas Ney não se calou.

O dinheiro do Secos e Molhados entrou, ergueu coisas belas e as destruiu com uma velocidade igualmente espantosa. Quando saiu o segundo disco, em 1974, não existia mais banda. Ney e Gerson desabafaram à imprensa sobre as mudanças internas promovidas por João Ricardo. Depois de chamar seu pai, João Apolinário, para empresariar a banda e ganhar um quarto do que o grupo recebesse, propôs, segundo entrevistas da época, que Gerson e Ney não fossem mais sócios, mas contratados do grupo. Gerson relatava um surto de raiva de João nos bastidores, depois que o grupo tocou sua versão de Rosa de Hiroshima, poema de Vinicius de Moraes musicado por Conrad, em um bis por duas vezes. Dizia que João Ricardo não admitia que alguém fizesse sucesso maior que o dele.

Ney saiu do grupo dizendo-se leve como há muito não se sentia. E ficou a obra. “Eu não sou desses (de guardar mágoas). Canto as músicas do Secos e Molhados porque aquilo também me pertence.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.