Adaptar as empresas às questões ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês), além de uma demanda da comunidade e de investidores, tornou-se necessidade em razão do risco legal às corporações. O motivo é a tendência de tribunais da Europa e dos Estados Unidos de reconhecer a jurisdição daqueles países para julgar ações coletivas em razão de danos ambientais e sociais provocados ao redor do mundo por empresas que têm sede e operações ou onde seus controladores moram. São processos bilionários, um mercado de US$ 40 bilhões por ano.

Ele atrai fundos de investimento interessados em bancar causas de pessoas como o mecânico Mauro Marcos da Silva, de 53 anos, morador de Mariana (MG), que teve uma propriedade de 2.148 m2 destruída em 5 de novembro de 2015 com o rompimento da barragem de Fundão.

Os 45 milhões de m3 de rejeitos de ferro despejados pela mineradora Samarco na bacia do Rio Doce causaram o maior desastre ambiental da história do País. “Até então, eu acreditava que vivia em um paraíso. E a ganância pelo lucro fácil tornou aquilo um inferno em nossas vidas. O paraíso ainda está lá, mas cheio de rejeito de ferro”, diz ele.

O mecânico é uma das 200 mil pessoas representadas pelo escritório de advocacia inglês PGMBM, que recentemente recebeu 100 milhões de euros (o equivalente a R$ 623,5 milhões) do fundo North Wall Capital para promover ações em nome de consumidores “vítimas de injustiças que não têm recursos para processar corporações”. No caso de Mariana, o escritório contou com financiamento de um fundo brasileiro, o Prisma Capital, que tem ativos alternativos de R$ 13 bilhões sob sua gestão. No PGMBM nenhuma ação desse tipo custa menos de 1 milhão de euros (R$ 6,2 milhões).

“O financiamento de litígios viabiliza o acesso à Justiça e equilibra as forças em uma disputa”, disse João Mendes, sócio e diretor executivo da Prisma. Com o dinheiro do fundo, os advogados puderam entrar com a ação contra a mineradora BHP Billiton, uma das controladoras da Samarco, em Londres – cujo Tribunal de Apelação reconheceu, em 8 de agosto, a jurisdição inglesa para decidir a disputa que envolve de 5 bilhões de euros a 7 bilhões de euros (R$ 31 bilhões a R$ 43,6 bilhões) – em caso de vitória, o fundo recebe parte da soma.

As mineradoras acusam a estratégia agressiva do PGMBM de captação de clientes, com promessas de vitória fácil, sem que a vítima precise desembolsar um tostão para entrar com a ação em Londres, em troca de 30% da indenização. A BHP Billiton alegou que a ação constitui duplicidade de feitos, pois os fatos tratados na Inglaterra já estão sendo analisado pela Justiça no Brasil. E disse que já desembolsou bilhões de reais em reparações por meio da Fundação Renova. A empresa estuda recorrer à Suprema Corte inglesa.

BRASKEM E NORSK HYDRO

Além do desastre de Mariana, ainda neste ano a Justiça europeia vai decidir se tem jurisdição para analisar dois outros casos ocorridos no Brasil – ambos estão na Holanda. O primeiro envolve a Braskem. Em 21 de setembro, a Corte Distrital de Roterdã vai definir se o país tem jurisdição sobre os danos causados pela mineração de sal-gema em Maceió, em Alagoas.

Desde 1976, o sal-gema era extraído ali para a produção de cloro e de soda cáustica. Em 2018, um abalo sísmico na região deixou rachaduras em imóveis e abriu crateras em ruas da cidade, forçando 55 mil pessoas a deixar seus imóveis. O terremoto foi causado pelo deslocamento do subsolo em razão da mineração. A Braskem encerrou a extração do sal-gema em 2019.

O outro caso que será analisado na Holanda envolve a Norsk Hydro. A gigante do alumínio norueguesa é acusada de danos materiais e morais causados pela Alunorte, que ela controla no Brasil, por degradar a floresta e contaminar a água com chumbo, mercúrio, arsênico e outros agentes em razão da produção de alumínio em Barcarena (PA). Os atingidos são a população ribeirinha e comunidades indígenas e quilombolas.

O processo é uma parceria do escritório inglês PGMBM com o advogado Ismael Morais, da Associação Cainquiama, que representa 11 mil pessoas. O valor da causa não foi fixado, mas deve alcançar centenas de milhões de euros. Seu objeto são despejos tóxicos no meio ambiente e o dano moral das pessoas.

No Brasil, há outras duas ações. Em uma, a Justiça determinou que a Norsk Hydro pagasse o exame de sangue de 300 pessoas supostamente afetadas pelos resíduos tóxicos. “O juiz deu a liminar em 2018, mas não consegue efetivar esses exames porque a empresa utiliza todo tipo de recurso para suspender a decisão”, disse Morais. A causa tem valor de R$ 200 milhões. Outra ação, que manda a empresa retirar do meio ambiente 60 milhões de m3 de rejeitos, tem o valor de mais de R$ 1 bilhão.

ESCOLHA

O que convence muitos dos prejudicados nesses casos a procurar uma corte estrangeira é a perspectiva de que o caso seja julgado segundo regras conhecidas, por tribunais confiáveis e com rapidez. A opinião é do advogado e professor da International Anti-Corruption Academy (IACA), em Viena, Martim Della Valle.

“As partes podem buscar solução onde o Judiciário funciona melhor para esse tipo de ação coletiva. Vou para Inglaterra porque no Brasil vai demorar 20 anos. Lá vai sair mais rápido, ainda que se aplique a lei brasileira no mérito.” Outra vantagem seria a lei processual considerada mais eficiente, o que favoreceria a busca de acordos.

Não só casos ambientais, mas também os de cartéis têm atraído a atenção de quem deseja deslocar a jurisdição para a Europa. “Nosso escritório foi procurado por um escritório inglês em busca de casos”, contou Della Valle.

Na Inglaterra, dois membros da família Cutrale são alvo de uma ação bilionária, que os acusa de “práticas ilícitas e anticompetitivas na compra de laranjas e na produção de suco concentrado, controlando os preços e volumes destinados à exportação”. O PGMBM representa nela 1.553 produtores de laranja, 22 empresas e a Associtrus.

“O cartel afetou pequenos comerciantes. Estamos falando de um aspecto importante do ESG. Não podemos falar de uma sociedade desenvolvida e forte com um mercado ineficiente e injusto”, disse a advogada Ana Carolina Salomão Queiroz, do PGMBM, onde chefia a área de financiamento de litígios.

DEMORA

Se no Brasil as ações coletivas podem durar décadas, na Europa, esse prazo cai para anos. Em Mariana, parte dos atingidos espera há sete anos. “A proposta (da Fundação Renova, que representa Vale e BHP Billiton, controladores da Samarco) que me fizeram foi de R$ 600 mil”, contou o mecânico Mauro Marcos da Silva, da comissão de atingidos. Para ele, há uma estratégia das empresas de causar desgaste nas pessoas. “Na medida em que o tempo passa e a reparação não vem de forma justa, as pessoas acabam aceitando (o que é oferecido).”

Sócio da Prisma, que financiou a ação sobre Mariana, João Mendes disse que “estratégias de procrastinação” não funcionam quando há financiamento de litígios, pois ele permite equilibrar as disputas. “O financiador não incentiva a litigiosidade. Quem financiar ação improcedente ou aventureira vai perder dinheiro.” Para ele, o financiamento melhora o bem-estar social, pois “torna mais custoso descumprir leis e contratos”.

Ao analisar e aceitar o caso de Mariana, a Corte inglesa levou em consideração o desequilíbrio entre as partes na Justiça brasileira. E, assim, as cortes estrangeiras passam a ser uma opção de vítimas, como Silva. “Iniciei minha vida aos 7 anos vendendo jabuticaba em balaio, e minha intenção era terminar minha vida na jabuticaba. Até que veio a lama e levou tudo.”

DEFESAS

A maioria das empresas que são alvo de litígios em cortes estrangeiras afirmou ao Estadão que já assumiu a responsabilidade pelos danos causados e está indenizando as vítimas. Esse é o caso da BHP Billiton e da Braskem. A Fundação Renova (criada por BHP e Vale, controladoras da Samarco) informou valores pagos a mais de 389 mil pessoas e desembolso de R$ 23 bilhões em ações de reparação dos danos em razão do rompimento da barragem de Mariana.

Elas e a Norsk Hydro – que disse serem infundadas as acusações de contaminação causadas pela Alunorte – apontaram duplicidade nas ações nas cortes europeias, pois tratariam de fatos já examinados na Justiça brasileira. A Cutrale alegou não ser parte na ação inglesa sobre cartel. A reportagem não localizou a defesa da TÜV SÜD. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.