BRASILEIROS DO ANO – SAÚDE

Em todo o planeta há um desejo unânime pela cura da Covid-19 que é a maior tragédia contemporânea da humanidade. Ao todo, são 73,6 milhões de infectados e 1,6 milhões de mortos, no mundo. O Brasil é o País com o segundo maior número de vítimas: já passou de 184 mil mortos, além de quase 7 milhões de pessoas contaminadas. O ano foi marcado pela luta dos profissionais de saúde. Portanto, nada mais legítimo do que premiar quem esteve na linha de frente do combate ao coronavírus. O maior homenageado por ISTOÉ, na edição dos “Brasileiros do Ano”, é o médico e ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Aos 56 anos, manteve seu juramento de médico e defendeu a ciência e as vidas dos brasileiros. Mesmo que para isso tivesse de enfrentar a insanidade do seu chefe, o presidente Bolsonaro. Como resultado do embate, foi demitido em abril, no auge da pandemia. Mandetta foi a referência ética para um País que expôs suas mazelas, especialmente devido a incompetência das suas autoridades. Junto com o ex-ministro são reverenciados: a biomédica Jaqueline Goes de Jesus; a médica pneumologista Margareth Dalcomo; o médico hematologista Dimas Covas; e a médica clínica-geral Dulce Pereira de Brito.

Mandetta estava no mais alto posto da saúde pública quando a Covid-19 chegou ao País. Cabia a ele utilizar toda a sua expertise científica para pensar nas ações mais eficazes para o combate ao vírus. Era algo novo no mundo e a literatura médica não seria suficiente para oferecer soluções. Em entrevista, à ISTOÉ, o médico conta que soube desde o início que as medidas necessárias seriam duras. A falta de material para proteção ia exigir disciplina das pessoas para ficar no isolamento social e, assim, evitar a transmissão. Ele foi obrigado a se posicionar ostensivamente contra a postura irracional do presidente, provocando um embate público inédito entre o ministro e o mandatário que se mostrava desqualificado para enfrentar a crise. Enquanto Bolsonaro afirmava que menos de 800 pessoas morreriam e que era só uma gripezinha, o ministro aconselhava a fazer um esforço colaborativo com toda a sociedade porque “poderiam morrer mais de 180 mil pessoas”, conforme ele avisou ainda em março. Mas Mandetta revela que o presidente preferia ouvir outras pessoas menos qualificadas. O então ministro chegou a explicar de forma didática. “Nosso inimigo era o vírus. Mas Bolsonaro preferiu criar novos inimigos. Ele atacou governadores, prefeitos, STF e ainda sugeriu que a China fazia um complô internacional”, disse. Além da discordância pública, a vaidade do presidente ficou abalada. Mandetta era, naquele momento, a personalidade mais importante do governo. Algo natural para a circunstância. Hoje, inclusive, ele tem o segundo nome mais procurado no Google durante 2020 no Brasil.

Apesar do obscurantismo de Bolsonaro, o ex-ministro não esteve só na luta contra o coronavírus. O País viu se destacarem outros profissionais que são homenageados como “Brasileiros do Ano”, por ISTOÉ. A coordenadora médica de saúde populacional do Hospital Israelita Albert Einstein e clínica geral, Dulce Pereira de Brito, implantou um projeto de apoio psicológico que já atendeu mais de 10 mil pessoas. A plataforma Ouvid busca a promoção de calma, resiliência e esperança. Os usuários podem acessar podcasts, meditações guiadas e dicas para exercícios físicos. Tudo para amenizar o sofrimento causado pela Covid-19. Outro destaque é a biomédica Jaqueline Goes de Jesus, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), que liderou a equipe que fez o sequenciamento genético do vírus, após 48 horas da confirmação do primeiro caso no Brasil, em 26 de fevereiro. Trazendo muita esperança, o médico hematologista e diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, é outro que se destacou como um dos principais responsáveis pelo plano de vacinação do Estado de São Paulo. Com início marcado para o dia 25 de janeiro, a imunização utilizará a vacina Coronavac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan. A médica pneumologista Margareth Dalcolmo é outra referência no combate à Covid-19. Pesquisadora da Fiocruz, ela defende “uma revolta da população” para exigir a apresentação imediata de uma vacina. Profissionais dessa envergadura salvam vidas diariamente.

Na política, no entanto, o presidente Bolsonaro continuou negando as evidências científicas. “Nunca pediu desculpas por qualquer atrocidade que tenha dito. Nem demonstrou empatia ou tristeza pela morte das pessoas”, diz Mandetta. No lugar do médico respeitado pela população, está agora o general Eduardo Pazuello. Mandetta critica a escolha. “É a mesma coisa que você colocar um médico para comandar uma guerra. A gente não sabe matar. General não sabe cuidar da saúde das pessoas”, explica. O ex-ministro lembrou de episódios ao longo do ano que demonstraram o perfil perverso do presidente. “Bolsonaro abandonou a saúde. Ele lavou as mãos, falou várias vezes que entre saúde e economia ele optava pela economia”, disse. Também lembrou dos episódios em que Bolsonaro chamou de “maricas” quem tivesse medo do coronavírus e das vezes em que o presidente foi as ruas sem máscara.

Quando foi demitido, Mandetta agradeceu a oportunidade de ter chefiado o Sistema Único de Saúde (SUS). Ele atribui ao órgão o fato de não terem morrido mais pessoas. “O SUS foi o grande vencedor contra as loucuras do presidente”. Ele diz que é necessário um plano de contenção urgente até que a vacina não chegue. “A segunda onda virá a partir de abril. Até lá, precisamos ter 70% da população vacinada”. No entanto, o ex-ministro afirma que o governo Bolsonaro tem trabalhado contra a vacina que está mais próxima de aprovação por conta do interesse político. “O presidente torce contra a vacina chinesa, fabricada no Butantan. Ele até comemora quando algo sai errado. Isso vai custar a vidas de pessoas”, disse o ex-ministro lembrando que será preciso comprar todas as vacinas que estiverem disponíveis, sem qualquer tipo de preconceito. Mandetta respirou fundo ao dizer que “imunizar todos os médicos, profissionais dos hospitais, idosos, diabéticos, hipertensos, enfim todo o grupo de maior risco”, seria a melhor solução para uma recuperação econômica. Ele diz que não é possível afirmar se a pandemia está no fim. E que mesmo uns dois anos após a vacinação massiva será necessário acompanhar o vírus.

Com tamanha exposição, a hipótese do ex-ministro ser candidato a presidente fica muito evidente. Mandetta não foge ao tema. “Se precisar que eu seja o porta-voz de algo que eu acredite, eu serei”, disse Mandetta. Analisa que o eleitor vai repensar o voto nos outsiders. “As experiências com: Collor, Dilma e Bolsonaro não foram positivas”, afimou o médico. Mandetta disse estar preocupado com os caminhos da economia nacional. “Há um perigoso ciclo inflacionário se iniciando e uma irresponsabilidade fiscal que pode jogar milhões de pessoas para pobreza extrema”. Ele ainda acrescenta que a “anestesia” do auxílio emergencial não vai continuar. E, quando passar a dor pode ser maior. Sobre os próximos dois anos, ele acredita que o mandatário continuará sendo “um presidente pequeno, obtuso, de raciocíonio primário, inconsequente e vai ser lembrado como tudo que não se deve fazer”.

Luiz Henrique Mandetta
Preservar vidas

Eleito o “Brasileiro do Ano” por ISTOÉ o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta sintetizou a emoção dos profissionais de saúde homenageados. “Eu acompanho a revista. Fico ansioso para saber quem traduz melhor o sentimento de todo um ano vivido. É uma grande honra receber esse reconhecimento. Pena que tenha sido um ano marcado por um trabalho interrompido”. Mandetta enfrentou o presidente Bolsonaro no início da pandemia e se tornou a voz mais importante na batalha da ciência em busca da preservação de vidas contra os negacionistas. Ele é médico ortopedista, tem 56 anos e entrou na política como secretário municipal de Saúde de Campo Grande, em 2004. Depois, foi eleito deputado federal por dois mandatos (2011 a 2018). Mandetta é filiado ao DEM, mas preferiu não disputar as últimas eleições. Ele disse que ficou surpreso com o convite para ser ministro da Saúde. Prodígio, ele mudou para o Rio de Janeiro aos 17 anos para cursar medicina na Universidade Gama Filho. Posteriormente, fez especialização em Atlanta (EUA) pelo Scottish Rite Hospital. Hoje, o ex-ministro é um dos nomes discutidos para enfrentar Bolsonaro nas urnas em 2022.

Jaqueline Goes de Jesus
Genoma em 48 horas

Marco Ankosqui

No Brasil foram necessárias apenas 48 horas para que se abrisse o livro dessa partícula infecciosa, e esse feito foi realizado por uma equipe de cientistas liderados pela doutora Jaqueline Goes de Jesus. A biomédica nasceu em Salvador, há 31 anos. Sua vida sempre foi em meio aos livros. Alcançou uma formação sólida: graduada em biomedicina, na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, depois fez um mestrado em biotecnologia e doutorado em Patologia Humana e Experimental, os dois cursos pela Fiocruz. Atualmente, cursa um pós-doutorado no Instituto de Medicina Tropical na Universidade de São Paulo, pesquisando o genoma do vírus da dengue. Nesse ano de 2020, a humanidade se deparou com uma nova doença que causou a morte de mais de 1,5 milhão de pessoas em todo o mundo. Esse potencial destrutivo foi determinante para que a comunidade científica se juntasse para analisar o genoma do Sars–CoV–2. Pesquisando o código genético foi possível saber como o vírus age dentro do corpo e qual a melhor forma de combatê-lo.

“O genoma é como um livro, um manual que apresenta todas as informações que precisamos saber para combater o vírus” Jaqueline Goes de Jesus

Margareth Dalcolmo
A médica da revolta

Marco Ankosqui

Mesmo em meio a um ano trágico, a médica pneumologista da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, não perdeu as esperanças de morar em um País mais justo. Personalidade constante na televisão e nos jornais, Margareth foi uma das médicas que constantemente explicou à nação o tamanho da doença que estávamos enfrentando. Desde março, ela vocalizava que a solução estaria em uma vacina e jamais em medicamentos como a Cloroquina. “Eu conheço o Brasil muito bem. Sei dos problemas que enfrentamos e gostaria de ver uma revolta da vacina ao contrário, onde as pessoas clamam pelo imunizante”, disse à ISTOÉ. A frase “Revolta da vacina ao contrário”, aliás, já virou seu bordão. A médica relembra o motim criado pela população do Rio de Janeiro em 1904, assustada com a imunização obrigatória contra a Rubéola. Margareth emite suas opiniões baseadas nos mais recentes estudos científicos, sem medo de represálias políticas. Enlutada pelos colegas que perdeu, Margareth diz que continuará exercendo a profissão que escolheu na adolescência. “Hoje as mulheres já são 50% nos cursos de medicina. É preciso perseverança.”

“A vacinação e os antibióticos são os grandes responsáveis pela qualidade de vida que a humanidade tem atualmente” Margareth Dalcolmo

Dimas Covas
A hora da vacina

Marco Ankosqui

O cientista e médico hematologista Dimas Covas, de 64 anos, é um desses guerreiros que estão na linha de frente do combate à pandemia. Na direção do Instituto Butantan desde o início do ano e atuando como estrategista no enfrentamento ao coronavírus no Estado de São Paulo, Covas tem dado um exemplo de trabalho discreto e eficiente com resultados significativos. Sob sua orientação técnica, o governo paulista conseguiu intensificar os esforços para o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra a Covid-19, a Coronavac, do laboratório chinês Sinovac em parceria com o Butantan. Ele anunciou o início de uma campanha de imunização em São Paulo no dia 25 de janeiro, que deverá beneficiar 9 milhões de pessoas, a princípio idosos com mais de 60 anos e profissionais de saúde. Covas tem contribuído para trazer racionalidade para um debate contaminado pelo negacionismo do governo federal e para mostrar para a população a importância da vacinação. Seu discurso tem base científica e vai contra a politização do doença, um dos problemas que afeta o País nesses tempos de luta contra a pandemia.

“Estar à frente do Butantan é uma oportunidade de contribuir com o que tenho de melhor: meus conhecimentos em saúde e gestão” Dimas Covas

Dulce Pereira de Brito
Saúde mental diante do caos

Marco Ankosqui

O ano de 2020 mostrou que super-heróis nem sempre usam capas, às vezes utilizam jalecos e luvas. É o caso de Dulce Pereira de Brito, Coordenadora Médica de Saúde Populacional do Hospital Israelita Albert Einstein, que, diante dos impactos mentais, físicos e emocionais da Covid-19, ajudou na criação do programa Ouvir Também É Cuidar (OUVID), que oferece amparo psicológico aos colaboradores da organização hospitalar. “Era pra apoiar quem estava na linha de frente, mas foi além”, conta Dulce. Criada em março, a plataforma oferece apoio de terapeutas, nutricionistas, dicas de relaxamento e muito mais, tanto para colaboradores quanto para seus familiares. “Quisemos dar ferramentas para que eles encontrassem paz em meio ao caos”, ressalta. Além disso, quem contraiu o vírus também recebeu apoio psicológico diário via central de atendimento e um app exclusivo. “Ver pessoas morrendo mexe com o emocional”, destaca a médica. Apesar do sucesso, Dulce reforça sua estratégia: “Precisamos cuidar da saúde mental para seguirmos firmes.”

“O contágio emocional da Covid-19 é maior que o do vírus. Peço que a população cuide de sua saúde mental. Vamos vencer” Dulce Brito

Colaboraram: Brian Alan, Fernando Lavieri, Taísa Szabatura, Vicente Vilardaga

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