INDIGNAÇÃO Familiares e amigos de Dom Phillips fazem manifestação diante da embaixada brasileira em Londres (Crédito:Toby Melville)

O correspondente do jornal inglês The Guardian Dom Phillips e o indigenista da Funai Bruno Araujo Pereira desapareceram no Vale do Javari, no Amazonas, no domingo, 5, reforçando a sensação mundial de que o Brasil é hoje um dos países mais violentos do mundo contra defensores do meio ambiente e jornalistas. O caso ainda não foi desvendado, mas chama atenção o desleixo e o atraso do governo federal nos trabalhos de busca, além dos primeiros movimentos institucionais de proteção de suspeitos. Phillips era um especialista em questões ambientais que publicava seus textos em diversos jornais britânicos e americanos e fazia uma pesquisa na região para escrever o livro Como salvar a Amazônia. Antes de rumar para o Vale do Javari, tinha visitado populações indígenas no Acre. Bruno Pereira era o guia e conhecia muito bem o território, além de ser um combativo protetor dos povos da floresta. Eles jamais se perderiam no caminho e a embarcação, equipada com motor de 40 HP, estava abastecida. Uma viagem tranquila, que deveria demorar duas horas, entre a comunidade de São Rafael e Atalaia do Norte, simplesmente não terminou.

A vastidão do território pode tornar a busca infindável, mas são enormes as possibilidades de que a dupla tenha sido vítima de uma emboscada. Bruno, que é membro da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), vinha sofrendo ameaças de morte por seu trabalho na região, que envolvia negociação de conflitos e colaborações entre indígenas e ribeirinhos. O problema atual envolvia a pesca predatória, em especial a do pirarucu Na data do desaparecimento, ele iria se encontrar com um líder comunitário chamado Churrasco, ouvido pela Polícia Militar na segunda-feira, 6. No dia seguinte, a polícia prendeu, com drogas e armas de uso restrito, um homem chamado Amarildo da Costa de Oliveira, 41 anos, apelidado de Pelado e sobrinho de Churrasco, que foi visto seguindo a embarcação em que viajavam Phillips e Pereira logo depois que eles deixaram São Rafael. Outras quatro pessoas que estão sendo procuradas acompanhavam Pelado no barco. Uma testemunha ocular disse que antes de partir para a perseguição, o suspeito pegou uma espingarda e um cinto de munições. Descrito localmente como alguém muito perigoso, ele já vinha dizendo que trocaria tiros e acertaria contas com Bruno. Logo depois de sua prisão, dois advogados, Ronaldo Caldas e Davi de Oliveira, que também são procuradores, respectivamente, dos municípios de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, se prontificaram a defender Pelado, indicando algum tipo de interferência política para tentar soltá-lo.

A negligência das autoridades brasileiras com o caso ficou evidente dede o início. Os dois foram dados como desaparecidos no fim da tarde de domingo. Na terça-feira, 7, ainda não se via nenhum helicóptero ou avião sendo empregado na busca. Só havia sete militares da Marinha e nenhum membro da Polícia Federal na área. O Comando Militar da Amazônia não foi acionado pelo Ministério da Defesa e informou que, embora preparado para o trabalho, dependia de ordem do escalão superior para agir. No dia seguinte, um helicóptero estava destacado, mas a má vontade do governo ficou evidente. O Ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, deu uma entrevista na quarta-feira e disse que as equipes que atuavam na região não tinham a menor ideia do que havia acontecido com os dois homens. Já Bolsonaro disse considerar uma “aventura não recomendável” a viagem pela região amazônica, como se obter informações sobre a realidade da vida na floresta fosse algo desnecessário. Phillips e Bruno não estavam se aventurando, mas trabalhando. “Realmente, duas pessoas apenas em um barco, numa região daquelas, completamente selvagem. É uma aventura que não é recomendável que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que eles tenham sido executados”, disse Bolsonaro.

“O Brasil é hoje uma das regiões do mundo onde é mais difícil e perigoso fazer jornalismo” Emmanuel Colombié, diretor na América Latina da organização Repórteres sem Fronteiras

Para Emmanuel Colombié, diretor do escritório para a América Latina da organização Repórteres Sem Fronteiras, o governo deu resposta insuficiente e atrasada para o caso, organizando suas ações de busca apenas quatro dias depois do desaparecimento. “A visão de Jair Bolsonaro mostra que houve pouca consideração com o caso”, disse. “Como Dom é britânico e o trabalho que estavam desenvolvendo provavelmente não agrada ao governo, a questão das terras indígenas, ocupação ilegal, a proteção da Amazônia, coisas que incomodam, o governo demorou para agir.” Membros da Unijava afirmaram que o governo, desde o início, não demonstrou qualquer interesse em encontrá-los. O caso teve enorme impacto internacional e coloca o Brasil na condição de lugar violento, especialmente contra jornalistas e quem luta pelos direitos humanos e pela defesa da floresta. Os fortes indícios de crime demonstram o empoderamento de grupos e indivíduos que agem na ilegalidade e impunemente em regiões remotas. Ambientalistas, jornalistas e indigenistas têm sido alvo preferencial de criminosos incomodados com críticas e denúncias. O sumiço de Phillips e Bruno repercutiu fortemente na mídia internacional e houve manifestações na Inglaterra e nos Estados Unidos exigindo respostas das autoridades brasileiras.

Cobrança da ONU

Localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, a reserva Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do País, possuindo 85 mil km2 e acesso restrito por vias fluviais e aéreas. Abriga 6.300 indígenas de 26 grupos de diferentes etnias, sendo que 19 deles são isolados – a maior concentração do mundo. A região é palco de conflitos típicos da Amazônia: tráfico de drogas, roubo de madeira e avanço do garimpo. A maioria das drogas que sai do Peru, com destino à Colômbia e também para o Acre precisam cruzar aquela região, que se tornou atraente para os traficantes, que se aproveitam da pouca vigilância do Estado e da fronteira vulnerável. O Brasil já foi alertado pela ONU em dois comunicados emitidos em 2017 e 2020, sobre a violência. Entidades internacionais denunciaram invasões indevidas e pediram providências do Estado brasileiro. Nos últimos meses, a ONU vem questionando de maneira mais veemente a atuação do governo brasileiro, acusando de omissão. No alerta emitido há cinco anos, sobre o Vale do Javari, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos expressaram “preocupação” diante de um massacre de povos indígenas em isolamento voluntário, próximo aos limites superiores do rio Jandiatuba, que fica justamente no Vale. Existem quatro bases da Funai na região (nos rios Ituí, Curuçá, Quixito e Jandiatuba) que, segundo a Univaja, são vitais aos indígenas tanto aos que estão em recente contato com a civilização quanto aos que permanecem isolados. Outro problema é a pesca ilegal do pirarucu, que leva a conflito entre os indígenas e os ribeirinhos.

Dom Phillips, 57 anos, era uma apaixonado pela Amazônia e estava entrevistando os moradores locais. Ele morava na Bahia e sempre que tinha oportunidade fazia reportagens na região. Era muito querido entre a comunidade de correspondentes da imprensa internacional. Sua mulher, Alessandra Sampaio, divulgou uma carta tocante na terça-feira, na qual implorava às autoridades brasileiras que buscassem seu marido e o parceiro de expedição, Bruno, com urgência. “No momento em que faço esse apelo, eles já estão desaparecidos há mais de 30 horas no Vale do Javari, uma das regiões mais conflagradas da Amazônia. Na floresta, cada segundo conta, cada segundo pode ser vida ou morte”, disse. “Sabemos que, depois que anoitece, se torna muito difícil se mover, quase impossível encontrar pessoas desaparecidas. Uma manhã perdida é um dia perdido, um dia perdido é uma noite perdida. Só posso rezar para que Dom e Bruno estejam bem, em algum lugar, impedidos de seguir por algum motivo mecânico.” Dois dias depois, Alessandra declarou que já tinha perdido as esperanças de que o marido fosse encontrado.

Quanto à Bruno, 41 anos, acumula anos de experiência nas atividade de proteção aos indígenas. Servidor de carreira da Funai desde 2010, ele pediu licença depois de ter sido exonerado da cordenação geral de Índios Isolados e Recém-Contatados. Como parte do esforço de desmantelamento do órgão no governo Bolsonaro, ele foi dispensado do cargo em outubro de 2019, e passou a trabalhar na Univaja. Nos dias em que circularam pela região enfrentaram hostilidades e situações de violência. Segundo o coordenador da Univaja, Paulo Dolli, Phillips havia fotografado no sábado, um dia antes de desaparecer, três homens armados que faziam ameaças aos indígenas. Bruno tinha desafetos na região e recebeu um bilhete apócrifo com ameaças de morte nas semanas anteriores à expedição.

Mensagens ameaçadoras

A mensagem, deixada num escritório da Unijava onde ele trabalhava, em Tabatinga, aparentemente vinha dos pescadores que retiram diariamente toneladas de peixes pirarucus e tracajás dos rios da reserva. “Sei quem são vocês e vamos achar para acertar as contas. Quem é contra nós é o Beto Índio e o Bruno da Funai. É quem manda os índios irem prender nossos motores e tomar os nossos peixes. Se querem dar prejuízo, melhor se aprontarem. Está avisado”, dizia o bilhete.

O último ranking mundial da liberdade de imprensa, divulgado pela organização Repórteres Sem Fronteiras situa o Brasil em 110º lugar, ao lado de Mali e El Salvador, entre 180 países. ”Hoje, o Brasil é uma das regiões do mundo onde é mais difícil fazer jornalismo”, afirma Emmanuel Colombié. Segundo ele, o Vale do Javari é uma área complexa na qual se misturam ilegalidades e há forte presença de pescadores, caçadores e traficantes. “É uma zona altamente perigosa. O que nos preocupa muito nesse momento é o fato de eles conhecerem a complexidade do local. É por isso que a notícia do desaparecimento é muito grave”, diz.

Já a secretária executiva da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Cristina Zahar, explica que a situação ainda é mais difícil para quem tenta fazer jornalismo independente. “No caso do Dom, que é free lancer, não há uma empresa por trás. Após a morte do Tim Lopes ficou claro que ao sair a campo é necessário adotar protocolos de segurança. Mesmo estando junto a uma pessoa experiente que conheça muito bem o terreno”, disse Cristina. “E os ativistas são os que mais sofrem. O Brasil é recordista em assassinato dessas pessoas. Lembro o caso da Dorothy Stang em que o assassino a conhecia e falava sobre ela com absoluta frieza.” Possivelmente, Dom e Bruno foram emboscados e executados com a mesma frieza no ambiente sem regras e sem lei que ameaça a floresta e seus habitantes.

Violência sem fim

Divulgação

A Amazônia vive há décadas uma renhida batalha por terras, riquezas e pelo domínio político. Nesse sentido, há pelo menos mais dois episódios emblemáticos que dão noção da violência contra defensores dos direitos humanos na região: os assassinatos do ambientalista Chico Mendes, em 1988, aos 44 anos, e da missionária Dorothy Stang, em 2005, aos 73 anos. Mendes nasceu e morreu em Xapuri, no Acre. Ele sabia a data exata de seu assassinato e comunicou, em seguida, o fato às autoridades de forma antecipada. Não adiantou. Foi morto na frente dos filhos e da esposa. A religiosa, nascida nos EUA e naturalizada brasileira, defendia arduamente a Floresta Amazônica e os povos que a preservavam. No trabalho de protetora da natureza, em Anapu, na região Sudeste do Pará, Dorothy também denunciou a ação ilegal dos grileiros. Tiraram-lhe a vida. Atualmente os grileiros de terra ganharam a companhia da mineração ilegal e de outros predadores da floresta, como os caçadores e pescadores clandestinos.