A violência contra a mulher e também a violência sexual infantil vêm crescendo no Brasil nos últimos anos. Cresce ainda mais agora em meio à imprescindível quarentena para o combate eficaz ao coronavírus. Os motivos são claros: mulher e marido violentos, mães e pais que habitualmente agridem filhos, todos estão nesse momento mais tempo juntos e em um lugar fechado — os seus lares. Somente os mal intencionados responsabilizariam o distanciamento social e a quarentena pelo aumento nesses crimes. Com ou sem isolamento, quem é violento é violento e ponto final. A restrição à circulação surge, assim, apenas como o dedo para um gatilho psíquico que já compõe o temperamento de algumas pessoas. “O que está ocorrendo, e é inegável que de fato está acontecendo, é a intensificação desse quadro”, diz Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“É inegável que no Brasil e também em diversos outros países as agressões aumentam no distanciamento social” Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Crédito:Divulgação)

Os dados do Fórum mostram que a violência contra a mulher é uma “epidemia” – que, como o vírus, saltou para uma “pandemia”. Em março de 2018, havia o registro de 6.775 ocorrências de violência doméstica. Agora, também em março, o índice de agressão à mulher subiu 20%, traduzidos em 9.817 casos. O Ministério Público aponta o acréscimo de 51% nas prisões em flagrante em decorrência de violência doméstica contra a mulher. São Paulo, epicentro da doença dos ataques de coronavírus, não está isolado nesse trágico fenômeno. Em outra análise, agora feita pelo software SEMrush, no qual foram analisadas pesquisas na internet, a busca no Google por “Lei Maria da Penha” apresenta o estratosférico salto de 238% em Pernambuco, seguido por Rio de Janeiro, com 124%. E não é diferente a situação em outros países. Na Europa, por exemplo, 33% das mulheres sofreram algum tipo de violência física, emocional ou sexual durante a quarentena.

Aos 44 anos, A.F (preserva-se aqui o nome da vítima) levou dias para conseguir falar sobre a violência que sofreu do marido sem cortar palavras com choro. “A gente vai tolerando, relativizando, até porque ninguém é violento vinte e quatro horas por dia”, diz ela. “Só percebemos a gravidade quando estamos com olhos roxos e braços quebrados”. Sem suportar seus próprios conflitos interiores, o agressor os projeta em outra pessoa. Dentro de um lar, sob a tensão da pandemia e numa forçada convivência (o que não justifica comportamentos abusivos), dá para imaginar em quem a pessoa projetiva descarregará o seu curto-circuito emocional: na parte fisicamente mais fraca, ou seja, na mulher. “Eles trazem em sua psique inúmeras inseguranças”, explica a conceituada psicóloga Mariete Duarte, integrante da Clínica Maia e especializada em psiquiatria pela Universidade de São Paulo. “Para mascarar seus conflitos, agressores costumam usar drogas lícitas como o álcool, e isso pode liberar comportamentos reprimidos sob a forma de agressividade física”. Não é sem razão, portanto, que a OMS recomendou a diminuição do consumo de bebidas alcoólicas em todos os países, enquanto durarem seus respectivos distanciamentos sociais. É preciso evitar o vírus e é igualmente preciso evitar a saturação emocional de pessoas vivendo vinte e quatro horas juntas e durante dias. Apesar da recomendação da OMS, no Brasil, infelizmente, empresas de delivery registraram um aumento de 50% no pedido de bebidas alcoólicas.

O predador e a mutação

Não só de marido e mulher forma-se uma família. Dentro de lares há também filhos, filhas, enteados, padrastos, madrastas e inúmeras possibilidades de formações parentais. Se no caso de violência doméstica há números e projeções, como saber o que acontece com crianças se confinadas com seus agressores? “Quando você fala de uma criança de cinco ou seis anos, ela nem sabe a violência pela qual está passando”, diz Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta. A consequência de abuso sexual de crianças durante o período de isolamento transforma o futuro em um lugar ainda mais perigoso. A quarentena reforça a existência de um problema recorrente em todo o mundo: o do ser humano como predador do próprio ser humano, ainda que haja uma outra predadora, terrível e invisível, como é a Covid-19. A violência, no entanto, não nasce com a mutação do vírus. A pandemia só evidencia agressores que podem morar sob o mesmo teto.