O ator Sergio Guizé ainda se surpreende quando inicia a apresentação de Perfeita!, peça em cartaz no Sesc Pinheiros. “É um grande desafio, são muitas luzes, tecnologia de ponta. No teatro, geralmente o trabalho do ator é mais artesanal, baseado na repetição, mas aqui temos de dançar junto com a tecnologia na criação de um realismo fantástico, futurista, no qual parece que tudo é possível por conta da linguagem do texto”, conta ele.

O motivo é o ineditismo do espetáculo escrito por Samir Yazbek: o ator vive Comandante, líder que, em um futuro próximo, convoca o Cientista (papel de Gustavo Machado) para uma criar uma cópia fiel de si mesmo que o tornará mais potente diante dos opositores e das crescentes reivindicações da população.

“Eu me concentrei na fábula para destacar três assuntos: a perspectiva de um futuro distópico, a questão do narcisismo e os avanços tecnológicos que nem sempre são usados para o bem”, aponta Yazbek, que pela primeira vez escreve um texto que destaca a importância da Inteligência Artificial na condução da narrativa. Isso porque Comandante não se reconhece e rejeita a própria cópia, mergulhando em uma crise de identidade que poderá ter consequências políticas.

“É um texto que desvenda como as decisões estabelecidas pelos poderes interferem na vida das pessoas, corrompendo as elites e indicando a importância de uma consciência aguçada para entender o mundo”, continua o dramaturgo, que buscou referências na obra dos escritores Philip K. Dick, Aldous Huxley e Ursula K. Le Guin, especialistas em ficção científica.

O grande desafio foi criar a cópia de Guizé, para que ele encenasse consigo mesmo. Os efeitos visuais foram criados por Olavo Ekman, que divide a autoria da animação com Marcela Návia. E, além da parte técnica, havia também a definição da personalidade dessa cópia. “Durante os ensaios, Guizé precisou contracenar com ele mesmo pois ainda não tínhamos sua imagem como cópia”, conta o diretor Ulysses Cruz.

“Mas ali percebi que teriam de ser dois personagens, ainda que um fosse a cópia do outro. Não teria graça se se comportassem exatamente da mesma maneira. Assim, determinamos que a cópia seria uma figura fria, cartesiana, programada para não errar, fruto da Inteligência Artificial. E o, digamos, original é humano, portanto erra, tem fragilidades, alterna o humor.”

A dualidade também provocou reações diversas no ator quando se viu diante da própria imagem. “Fiquei na dúvida se teria vergonha ou orgulho da minha cópia porque ela é ultraprocessada. Por exemplo, sinto que sua crueldade é detalhadamente trabalhada, equalizada. Também tem virtudes, mas, na maior parte, é um ser criado para aproveitar o posto de trabalho como imperador e não repetir os chiliques do original, um homem destemperado”, afirma Guizé. “A questão religiosa e o confronto do amor com o ódio que dividem os povos vão ser resolvidas facilmente pela cópia porque ela não tem sentimentos. A peça traz um olhar original sobre as sutilezas da alma humana especialmente quando o personagem se depara com seu reflexo. É como se sua imagem no espelho adquirisse vida e começasse a ditar a própria existência.”

O aspecto moral interfere ainda na trajetória do Cientista. “É um homem que faz grandes descobertas, mas que está ligado a uma corporação que tem interesses nefastos, em termos de humanidade”, comenta Machado. “No início da história, ele é um cara ingênuo, acreditando no benefício da grande invenção que lhe foi imposta como desafio. Logo ele enfrenta dilemas éticos, porque sua criação desencadeia toda a verdadeira ideologia totalitária desse império.”

Isso porque o Comandante, em sua ânsia de poder, pretende expulsar os estrangeiros que, nos últimos tempos, ganharam voz crescente e reivindicam direitos há muito negados. Entre esses párias, está a própria mulher do chefe do Estado, que justamente por ter emergido dos excluídos agora contesta as atitudes do marido. “Coloquei muita esperança nessa personagem porque é a única que não está do lado do opressor”, diz a atriz Sol Menezzes. “E, como ela está na lista das pessoas que serão expulsas, a referência imediata é a dos refugiados que são obrigados a deixar seu país em busca de uma vida melhor.”

Cruz trabalhou em detalhes a interpretação do elenco (que conta ainda com Luma Litaiff como Secretária), a fim de que o público perceba o incômodo que a cópia provoca no original. “Ela, inclusive, mete medo nele, o que leva a um importante ponto da peça: na maioria das vezes, nós não nos reconhecemos na imagem que outras pessoas têm de nós. Vivemos em uma época em que as pessoas são incógnitas e todo mundo tem medo de se mostrar com fidelidade, por isso é tão importante a reflexão proposta pela peça. Pretendemos que o público também se questione: afinal, quem sou eu? Qual imagem passo para as pessoas?”

Para reforçar o tom futurista, o encenador decidiu que uma trilha sonora acompanharia todos os 80 minutos da peça. Em alguns momentos, a música criada pelos Irmãos Lessa domina a cena; em outros, apenas pontua os diálogos. “A ideia nasceu durante uma madrugada, quando eu estava em meu apartamento, em São Paulo. Não havia barulho na vizinhança mas, ao fundo, era possível ouvir aquela mistura de sons que marca uma grande cidade. É como o som de um avião a jato intermitente que está muito distante. Foi quando percebi que, em São Paulo, temos uma trilha sonora constante.”