Quando Emicida lançou AmarElo, seu disco mais recente, em outubro de 2019, sua ambição já mirava voos mais altos que um simples conjunto de canções. Resultado de anos de pesquisas e vivências em diversas partes do mundo, o disco traz em sua forma esse indicativo. São raps com histórias e recados de amor, oferecendo um abraço em tempos – mesmo antes disso tudo – sombrios. Talvez num momento de falta de iluminação, artistas consigam jogar luz sobre um ambiente, e é o que pretende o novo projeto de Leandro Roque de Oliveira, 34 anos, o AmarElo Prisma.

Está lá, na capa do Pink Floyd, para todo mundo ver: o prisma transforma um raio de luz, alterando a velocidade das ondas em cores diversas. O Prisma – projeto multiplataforma que envolve podcast, vídeos no YouTube e conteúdo nas redes sociais a partir desta quarta-feira, 27 – também trata sobre isso: transformação e velocidade. “Você já parou para pensar que é parte de um sistema gigante, um sistema que envolve todos os seres vivos, todos os elementos do planeta, todas células do seu corpo?”, diz, no Movimento 1 – serão quatro, como uma sinfonia.

Em cada movimento, o cantor – que, em uma entrevista, cita de Belchior e Paulo Moura a Toni Morrison e bell hooks – exerce mais uma vez o que AmarElo deixava claro como um de seus preceitos: uma empatia humanista transformadora e única no cenário não só do rap nacional, mas da cultura brasileira como um todo.

A primeira das quatro partes do projeto joga sua atenção para a alimentação e os cuidados com o corpo. Com entrevistas com nutricionista, profissionais da gastronomia, da Ayurveda e de empreendedores da alimentação saudável – a maioria ligada a trabalhos em regiões menos favorecidas financeiramente -, Emicida compartilha narrativas pessoais buscando uma estratégia coletiva.

Privilégio

Um dos fatores mais interessantes da discussão, usualmente restrita às rodas de conversa de veganos, é justamente tentar compartilhar a ideia de que a alimentação saudável não pode ser um privilégio.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

“A gente já concebia o AmarElo maior do que simplesmente um disco nas plataformas”, explica Emicida, por videoconferência com a reportagem. “A construção do projeto trouxe muitas histórias, ideias sobre contar histórias diferentes, contrapontos à oficial. Passamos agora pelo 13 de Maio – nos últimos cinco ou dez anos, essa data foi muito atacada. Dizem que a princesa Isabel deveria ser a protagonista, mas quem está mais informado sabe que houve movimentos abolicionistas responsáveis pelo contexto.” Para ele, é constrangedor que esse tipo de revisionismo histórico esteja associado a ideias absurdas como o “terraplanismo” e a total falta de entendimento sobre o que foi o nazismo. O novo projeto é também uma tentativa de nadar contra essa maré.

“Quando mergulhamos nas referências, samples e metáforas, o disco faz uma reflexão involuntária e se conecta com muito do Brasil do passado. Mas acredito que ele trata muito também sobre o futuro, e o Prisma é essa ‘forma geométrica’ que recebe luz branca e a converte em um arco íris, dissipando para todas as possibilidade de cor.”

Emicida acredita que o momento histórico é marcado pelo esgotamento do modelo da colonização, “perigoso e limitador”, e a ideia é compartilhar informações e sabedorias afro-americanas, nativas, orientais.

“Penso muito sobre a escola e nos buracos deixados pela informação que recebi ali. Se a escola tivesse me instigado, com dúvidas que me fizessem olhar para o lugar onde nasci e entender que as plantas podem ser comestíveis, que taioba não é capim… Essas informações não chegaram por vias tradicionais”, lamenta o artista.

Para ele, o ensino insuficiente da história do País também impediu a construção de um caminho melhor, de um “projeto Brasil com humanidade”.

O Prisma é também mais um passo na missão que Emicida empreende com o rap nacional para desmontar estereótipos.

“Há uma forma de se comunicar, entre nós, que nos fez reproduzir muitos comportamentos que já não fazem sentido em 2020. bell hooks diz que o rap tem um potencial gigante, mas que arranha apenas a superfície do que é ser um homem preto. Existem tantas camadas dentro disso. Não podemos ficar limitados a ser uma cicatriz, uma tragédia. A indignação também é urgente e útil, mas é importante entender a necessidade de se conectar com a vida antes de uma tragédia.”

Os Movimentos, com podcasts de cerca de 1h30, vídeos e textos nas redes sociais, vão tratar ainda sobre saúde mental, atividades físicas e da importância de se conectar com sua comunidade – “também não quero que seja individualista, quero que conexões aconteçam”.

“A doçura é revolucionária”, diz o artista, compositor, empresário. “Malcolm X diz, na sua autobiografia, que, se você oferecer ao sedento um copo de água suja, ele vai beber, mas, se colocar uma água limpa, melhor. A gente está oferecendo o que acreditamos que seja a água limpa. A gente parte do rap, e tudo está entrelaçado na história, a gente caiu, sofreu, chorou, mas a gente se levantou, construiu, sonhou. As pessoas precisam partir do micro, e aqui eu digo no sentido de pensar o que comer. Será que a comida que eu coloco na minha mesa não tem destruído a vida de famílias no cerrado, no norte do meu País? Estou falando, nesse projeto, desse tipo de reflexão mais ampla, para que as pessoas saiam do modo avião.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias