O passar dos dias e suas consequências inspiraram o escritor cubano Leonardo Padura a desenvolver mais uma aventura de seu principal personagem, o detetive Mario Conde – em A Transparência do Tempo, lançado agora pela Boitempo, ele vive seu oitavo caso, o desaparecimento de uma estátua de uma virgem negra. Conde assume o caso ao ser contatado por um antigo colega, que pede ajuda para reaver a peça e outras joias de muito valor.

É o ponto de partida para Padura, hábil manipulador do tempo e espaço literários, movimentar a trama entre quatro eixos cronológicos. O presente, em que ocorre o evento principal, e mais três eixos representando três circunstâncias históricas da Espanha e da Catalunha em particular: a guerra civil de 1936-1939, a guerra civil na Catalunha, travada entre 1462 e 1472, e um evento, ocorrido quatro séculos antes, nas mesmas paisagens da Catalunha medieval.

Em meio a tudo isso, encontra-se Conde que, próximo de completar 60 anos, reforça seu ceticismo em relação a Cuba, onde acompanha, preocupado, ao encolhimento da oferta de livros usados cuja revenda tornou-se seu ganha-pão. Em meio a esse problema, o detetive não tem outra escolha e aceita o pedido do antigo colega.

Desde sua estreia, em Passado Perfeito (1991), Mario Conde solidificou a imagem de ser o representante de uma espécie rara de policiais durões, aqueles cuja metodologia escapa à lógica dedutiva típica dos primeiros detetives do gênero.

Aos 63 anos, Padura joga habilmente com o tempo para, na verdade, refletir sobre o presente. É o que revela nesta entrevista, feita por e-mail.

Pode-se dizer que o romance é um noir de raiz histórica?

Sim, e também dizer que é um romance histórico que se resolve como um noir. Em meu caso, não jogo com os dois gêneros – utilizo-os para um mesmo fim, que é a clarificação do presente, de minha circunstância cubana tão peculiar e difícil de representar por suas singularidades, quando a arte deve propor a universalidade. E o jogo está em que não sou nem um autor de policiais nem de romances históricos, mas um escritor que se vale desses dois gêneros tomando deles os elementos que me são úteis e descartando o restante. É uma perspectiva literária heterodoxa, como é minha perspectiva da realidade e da vida.

Yoyi El Palomo, amigo de Mario Conde, em dado momento diz ao detetive: “Você não progride, Conde. Estancou!”. Trata-se de um momento de honestidade autorreflexiva do autor?

Não, é um momento para eu rir das atitudes de Conde, que é um nostálgico, um subdesenvolvido tecnológico, um homem que pensa e age como um ser do século 20 em pleno século 21. E é uma resposta a um crítico que perguntava como é possível que Conde não tenha um telefone celular – em um país onde manter um custa um mês de salário médio pago pelo Estado. Como Conde vai progredir?

Mario Conde e seus amigos estão perto dos 60, ou seja, velhos para reciclar o presente e o futuro, mas jovens demais para morrer. Essa é a idade em que uma geração se sente frustrada?

Sim, frustrada e derrotada, não apenas pela sociedade e pela história, mas pela passagem do tempo, implacável e irreversível. Essa geração, que é a minha, acreditou e participou de um projeto e, ainda que a essência política desse projeto não tenha mudado, essa geração não tem capacidade (ou tem menos) de se reciclar e se manter à tona. Essa é sua tragédia, seu destino.

O romance retrata a crueldade a que o governo submeteu os homossexuais, como o personagem Bobby. Mas o curioso é que ele não é apenas uma vítima – ele também trabalha com o tempo, faz uma ligação entre o presente e o passado, verdade?

Bobby foi uma vítima. No presente do romance, porém, ele é também um carrasco. Creio que é daí que brota sua humanidade, sua verossimilhança. Em Cuba, os homossexuais foram sem dúvida reprimidos, mas há décadas que essa situação mudou e hoje eles são um grupo social que não vive mais sob pressões oficiais (se sofrem pressões familiares ou religiosas, não sei). O fato de alguém ter sido maltratado em uma época não significa que seja um mártir ou um santo. O homem é um ser muito complexo e reage segundo suas circunstâncias e suas características individuais, por isso não se pode nunca generalizar nem individualizar categoricamente. O tempo e as condições em que as pessoas vivem podem fazê-las mudar e transformá-las em outras. Todos conhecemos exemplos disso, não?

O romance descreve uma sociedade muito desigual. Por que ela está cada vez mais desigual? O que há de errado?

A sociedade cubana, que foi muito homogênea durante três décadas, entrou numa crise profunda a partir de 1990, com o fim do apoio político e sobretudo econômico da União Soviética. Desde então, a crise vem afetando uma grande parte da população cubana, que empobreceu como país até extremos a que parecia impossível se chegar. Mas, nos últimos anos, com umas poucas mudanças, a sociedade cubana começou um processo de ampliação de seu tecido social e, embora setores empobrecidos continuem na mesma situação, ou pior, alguns pequenos bolsões da sociedade atingiram um nível econômico muito superior ao de seus compatriotas. Artistas e esportistas bem-sucedidos e pequenos empresários que deram certo são uma parte desse setor, ao lado de indivíduos que prosperam com as insuficiências das estruturas econômicas do Estado e com as carências e necessidades de seus compatriotas. E, apesar de o governo manter uma guerra aberta a certas formas de enriquecimento, o problema, a meu ver, não está nas possibilidades superiores de alguns, mas nas carências profundas de muitos.

O romance termina em 17 de dezembro de 2014, dia do pacto entre Raúl Castro e Barack Obama. Parece que Conde tem a grande esperança de que algo muito grande vá ocorrer. Mas hoje sabemos que existe Trump. Como Conde viveria nestes tempos difíceis?

Ontem vivíamos com esperanças, como num sonho, e hoje voltamos a viver no pesadelo que dura quase seis décadas. Mas o que aconteceu era previsível, talvez uma das poucas coisas previsíveis com um tipo aparentemente tão imprevisível quanto o presidente Trump.

Por falar em presidentes, o que o senhor pensa da atitude do governo brasileiro de não convidar o governo cubano para a posse do presidente Jair Bolsonaro?

É a atitude lógica e consequente de um homem como Bolsonaro. Além disso, não creio que o governo cubano tivesse aceitado o convite. É uma pena o estado a que chegaram as relações entre os dois países, que, acima da política, têm tantas conexões essenciais em história, cultura e forma de ver e entender a vida. Uma pena.

O senhor acredita que haja um parentesco profundo entre a literatura de suspense e a psicanálise, no sentido de que existe sempre, em ambas, uma verdade encoberta que se desvela?

Claro que há. A diferença é que, nos romances policiais, a verdade é literária e pode se mostrar, e na psicanálise é pessoal e humana e muitas vezes permanece oculta, por diversas razões. A busca da verdade, no romance policial e na literatura em geral, também está relacionada aos comportamentos e à condição humana… E esse é um dos territórios de interesse da psicanálise.

Leonardo Sciascia usava o suspense como instrumento para falar sobre questões de identidade. O que o senhor acha disso?

Em todos os casos em que busco contextos históricos, faço isso com um olhar ou intenção contemporânea, atual: a História me ajuda a iluminar e entender o presente, a comprovar que em essência a condição humana, uma vez que somos seres sociais, com comportamentos similares que, ainda que não possamos falar de circularidade no transcurso do tempo, suas espirais às vezes se aproximam tanto que se tocam e se replicam. Em alguns romances policiais que falam da realidade social cubana de meu tempo, essa perspectiva de profundidade que lhe dá a História, conectada direta ou indiretamente ao momento atual, proporciona uma densidade conceitual a meus propósitos de questionamento e definição do presente e me oferece um território literário no qual desfruto de outras liberdades e possibilidades técnicas e formais que também me interessa explorar. E todo esse aparato literário me leva à possibilidade de trabalhar uma identidade e, ao mesmo tempo, proteger-me das superficialidades de um olhar folclórico ou tipicista.