Em Gaza, corrida pela ajuda humanitária é palco de saques, caos e tiros

Gaza

Quase dois anos após o início da guerra entre Israel e o grupo radical islâmico Hamas, a quantidade reduzida de alimentos que tem autorização para entrar em Gaza é rapidamente consumida por palestinos famintos que arriscam suas vidas sob tiros, saqueada por gangues ou desviada em meio ao caos, sem chegar aos que mais precisam da ajuda.

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Graças à pressão de outras nações, o Exército israelense voltou a autorizar a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza nesta semana, mas a quantidade é considerada insuficiente por entidades internacionais. Os problemas são consequência do bloqueio total à ajuda humanitária, imposto por Israel de 2 de março a 19 de maio.

Corrida para sobreviver

Todos os dias, os correspondentes da agência de notícias AFP testemunham cenas terríveis em que multidões desesperadas avançam, muitas vezes colocando suas vidas em perigo, sobre veículos carregados de mantimentos ou na direção dos locais de aterrissagem da ajuda lançada por via aérea.

Na quinta-feira, 31, em Al Zawayda, centro de Gaza, dezenas de palestinos desnutridos correram, aos empurrões, para disputar os pacotes após o lançamento de paletes de um avião. “A fome levou as pessoas a se voltarem umas contra as outras. As pessoas lutam com facas”, disse Amir Zaqot, que procurava ajuda, à AFP.

Para evitar distúrbios, os motoristas do Programa Mundial de Alimentos são instruídos a interromper a viagem e permitir que as pessoas retirem diretamente a ajuda.  “Uma roda de caminhão quase esmagou minha cabeça e me machuquei ao pegar o saco”, disse um homem, com um saco de farinha sobre a cabeça, na região de Zikim.

Em Gaza, corrida pela ajuda humanitária é palco de saques, caos e tiros

Reportagem da AFP presenciou desespero para conseguir mantimentos escassos

Em Gaza, comer é sacrifício

Mohammad Abu Taha seguiu de madrugada para um ponto de distribuição perto de Rafah, no sul, para entrar na fila e reservar seu lugar. Segundo ele, ao chegar, já havia milhares esperando por comida. “De repente, ouvimos tiros. As pessoas começaram a correr, empurrando e caindo, crianças, mulheres, idosos. A cena é trágica: sangue para todos os lados, feridos, mortos”, contou.

Quase 1.400 palestinos que aguardavam por ajuda morreram desde 27 de maio na Faixa de Gaza, “a maioria” em ações do Exército israelense, denunciou a ONU na sexta-feira, 1º. As forças israelenses negam apontar contra os beneficiários da ajuda, alegando que são “tiros de advertência” quando as pessoas se aproximam muito de suas posições.

Há vários meses, organizações internacionais também denunciaram os repetidos obstáculos impostos pelas autoridades israelenses, como negar permissões para atravessar as fronteiras, lentidão nos trâmites alfandegários e lentidão nos pontos de acesso.

‘Experimento darwiniano’

Parte da ajuda é saqueada por gangues, que atacam diretamente os depósitos, e desviada para comerciantes que a revendem a preços exorbitantes, segundo várias fontes humanitárias e especialistas.

É uma espécie de experimento darwiniano no qual apenas o mais forte sobrevive: os mais famintos não têm energia para correr atrás de um caminhão, esperar horas sob o sol ou brigar por um saco de farinha“, disse Muhammad Shehada, pesquisador convidado do Conselho Europeu das Relações Exteriores.

Netanyahy

Benjamin Netanyahu , primeiro-ministro de Israel, é responsável por política de isolamento humanitário em Gaza

“Estamos em um sistema ultracapitalista, onde comerciantes e gangues corruptas enviam crianças para arriscar suas vidas nos pontos de distribuição ou em saques. Virou uma nova profissão”, explicou Jean-Guy Vataux, chefe de missão do Médicos Sem Fronteiras.

Os mantimentos, contou, são revendidos depois para “aqueles que ainda podem pagar” nos mercados da Cidade de Gaza, onde o preço de um saco de farinha de 25 kg pode ultrapassar os 400 dólares (R$ 2.215, pela cotação atual).

Israel acusou diversas vezes o Hamas de saquear a ajuda humanitária da ONU, que transportava a maior parte da ajuda desde o início da guerra, desencadeada pelo ataque do movimento islamista palestino em território israelense em outubro de 2023. Essas acusações foram citadas como justificativa para o bloqueio total de ajuda.