O escritor Salman Rushdie nasceu na Índia, viveu anos na Inglaterra onde se tornou britânico e hoje mora nos Estados Unidos. “É muito interessante nascer em um país muito antigo, ter vivido em outro razoavelmente velho e agora estar em outra nação bem mais jovem”, disse ele que, nesta quinta-feira, 12, participou de dois eventos na Feira do Livro de Frankfurt, a maior do mercado editorial do planeta. Ambos encontros eram para falar de seu mais recente romance, “Golden House” (Casa Dourada, em tradução livre), mas, nos dois momentos, Rushdie foi obrigado a falar do presidente Donald Trump.

O motivo está nas próprias páginas do livro, ainda sem previsão de tradução no Brasil. Conta a história de uma família de indianos, liderada por Nero Golden, que chega fugida aos Estados Unidos. O nome do patriarca é falso, assim como de seus três filhos. Eles se instalam no território americano logo que Barack Obama assume o primeiro mandato e a trama os acompanha até a eleição do novo presidente, identificado como Joker – que tanto pode ser traduzido como a carta de baralho curinga quanto como “piadista”. “Não escrevi o livro pensando em Donald Trump”, alertou Rushdie, cujos 70 anos não diminuíram o hábito de olhar enviesado e o de buscar, com um sorriso rascunhado nos lábios, a reação da plateia sobre seus comentários.

“A única semelhança que meu personagem tem com Trump é que ele também trabalhou no ramo imobiliário e é casado com uma mulher do Leste Europeu, que ostenta como um troféu. De resto, são totalmente diferentes.” Pode parecer a pura verdade, ainda que o tal sorrisinho ou não passa de um tique nervoso ou revela como Rushdie gosta de pregar peças em seus leitores. Em todo caso, o escritor ofereceu uma interessante explicação sobre a ignorância que o próprio autor tem sobre seu trabalho. “A maioria dos criadores concorda comigo quando digo que nossas obras são mais inteligentes e perspicazes que nós mesmos. Muitas vezes, preconizam o futuro, mesmo que a gente não perceba. Até o dia da eleição americana, eu apostava na vitória de Hillary Clinton, mas meu livro já dizia que isso não aconteceria.”

Rushdie lembrou de um encontro que teve com o escritor britânico Ian McEwan. Durante o jantar, eles se divertiram ao concordar que, se antes tentassem publicar uma história sobre tudo o que ocorre hoje, seriam impedidos por seus editores, crentes de uma inverossimilhança. “A vitória de Obama trouxe um ar liberal para a América e todos pensamos que isso não ia mudar. Só não contávamos com a força da reação da ala conservadora”, disse o escritor, que classificou a vitória de Trump como uma “perfeita tempestade”. “Não esperávamos pela reação do ódio tampouco a enorme explosão de racismo. Os eleitores brancos, temendo se transformar em minoria, comandaram a mudança, especialmente as mulheres (55% dos votos de Trump foram femininos) e aqueles que se sentiam à margem das decisões políticas do país.”

Salman Rushdie falou primeiro no simpático programa produzido pelo canal 2DF, Das Blaue Sofa, onde foi entrevistado durante meia hora, no meio da tarde. Em seguida, emendou uma mini sessão de autógrafos pois, uma hora depois, já estava no estande da revista Der Spiegel que, neste ano, comemora 70 anos. Como o tempo era curto, não conseguiu trocar de terno, como pretendia, mas também não precisou refazer a maquiagem – o pessoal do 2DF caprichou no pó de arroz para a sua carequinha não brilhar debaixo dos refletores.

Sentiu-se embevecido quando seu livro foi comparado às obras de Mario Puzo (“O Poderoso Chefão”) e F. Scott Fitzgerald (“O Grande Gatsby”). “Como eles, busquei inspiração no momento presente, para deixar a obra mais pulsante e também flexível – foi o que me permitiu fazer algumas alterações depois da eleição de Trump”, disse ele, que acrescentou ainda outro livro como comparação, A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe. “Ele captou o momento americano dos anos 1990, como fiz agora, com os tempos atuais, em Golden House. É um risco fazer isso, pois não tive o distanciamento histórico, mas é mais excitante.”

O livro, aliás, tem traços policialescos, que não convêm divulgar sob risco de spoiler. Rushdie contou sua adoração por descrever identidades e, como bem faziam a escritora Agatha Christie e o cineasta Alfred Hitchcock, soberanos em histórias de suspense, ele se divertiu com o poder que deteve em mãos. “Somente nós, criadores, sabemos do segredo que vai mudar a trama e decidimos quando isso tem de ser revelado.”

Novamente, esboça o sorrisinho, que já vai se tornando trivial. É quando descredencia Trump como bom personagem. “É um homem com enorme poder, mas, mesmo assim, uma pessoa desinteressante. Tenho a impressão de que não podemos mais dizer as coisas como antes. Vivemos tempos obscuros.” Por fim, ao ser informado da disposição do presidente americano em sair da Unesco, foi taxativo: “Ele é mestre em quebrar pactos, alianças, acordos. Cumpre as promessas de campanha. Trump estacionou na esquina da História”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.