A trajetória do escritor Manuel Duarte se confunde com a do País: ao estrear com um romance histórico que se tornou um best-seller anos atrás, ele vive agora o impasse do entrave criativo, potencializado por uma crise emocional. Pior: sem dinheiro e sem afeto, vive na iminência de ser duplamente despejado: de seu apartamento e do coração das mulheres que ama. Manuel Duarte é o protagonista de Essa Gente, novo romance de Chico Buarque que a Companhia das Letras lança a partir do dia 14.

Em sua constante reflexão sobre a linguagem, Chico exercita-se agora no formato de um diário, no qual a sucessão de fatos é registrada com datas que vão de 13 de dezembro de 2016 (a mais antiga) até 29 de setembro deste ano. São pequenos capítulos que são, na verdade, peças de um quebra-cabeça que, montado, oferece uma trama com ar policial ao leitor.

“Essa Gente é, entre os romances de Chico, o mais áspero e possivelmente o mais enigmático”, escreveu o também autor Sérgio Rodrigues, no material de divulgação do livro. “A reflexão sobre a linguagem que é uma dimensão estruturante das ficções buarquianas se ancora desta vez no estilo mais imediato de todos: o do apontamento rápido, feito para auxiliar a memória do próprio apontador no futuro, quando houver distância e lucidez para transformar o tumulto do presente numa história redonda. Sim, estamos no nebuloso país do agora. A parte da brincadeira que cabe ao leitor é mais decisiva do que nunca.”

É justamente essa proximidade com o agora que torna a escrita de Chico Buarque mais atraente, especialmente com as escolhas que fez para não desviar dos problemas do presente sem, contudo, tomar uma atitude beligerante – algo que talvez alguns esperassem, depois de o escritor trocar farpas com o presidente Bolsonaro por causa da assinatura em seu diploma do Prêmio Camões.

Chico prefere soluções elegantes, que apostam na eloquência dos detalhes. Como na cena em que o narrador descreve a fome do cachorro de uma das mulheres de Duarte: desesperado, “o cão devora um jornal que encontra no chão do banheiro e começa a mastigar as notícias: soldados disparam oitenta tiros contra carro de família e matam músico negro”.

Também revela sua intimidade com o mercado editorial, proximidade que lhe permite também brincar com posturas condenáveis, mas, de fato, existentes. É o que acontece quando Duarte, desesperado para publicar seu novo romance, é obrigado a tratar com seu editor, “nosso velho Petrus, tido como um homem culto, sensível, amante extremado da boa literatura”, mas que se revelou “um comerciante reles”.

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O protagonista de Essa Gente se desdobra para ganhar um sustento enquanto luta contra resistências – além de duas ex-mulheres, tem um filho pré-adolescente com quem praticamente não conversa. “Enquanto isso, à sua volta, o Rio de Janeiro sangra e estrebucha sob o flagelo de feridas sociais finalmente supuradas, exibidas por muitos com uma espécie doentia de orgulho”, observa ainda Sérgio Rodrigues, apontando com exatidão o paralelo feito entre a derrocada do escritor com a da metrópole.

Em uma entrevista a um jornal argentino em 1999, Chico Buarque confessou que se via como um artista mais inovador na literatura que nas letras de suas canções. E, se assim acreditava, era para reforçar também a influência literária que sempre marcou suas histórias em livros. O grande passo para isso foi dado oito anos antes, com a publicação de Estorvo, que o próprio autor considera a virada para a maturidade literária. Trata-se de uma nova fase de sua escrita, em que ele busca alternativas para expressar seu pensamento.

Ali, o autor construiu uma narrativa que corre no ritmo acelerado (na primeira pessoa e no presente), ao mesmo tempo em que busca ser despretensiosa. O mesmo tema (um homem que não se sente bem em seu meio) foi retomado com Benjamim (1995). Novamente, Chico Buarque fez da própria escrita o seu material, criando uma intrincada estrutura da narrativa, em que uma história é contada simultaneamente no presente e no passado.

O habilidoso jogo de palavras voltou em 2004, com a publicação de Budapeste. É a história de um ghost-writer, ou seja, alguém que escreve o que outras pessoas assinam, artigos para jornal, autobiografias e até poesia. Novamente, Chico volta a brincar com as palavras e, ao utilizar um personagem que vive da escrita, fez com Budapeste se transformasse em seu texto mais autoral até a chegada de O Irmão Alemão (2014), em que a narrativa se estrutura na constante tensão entre um de fato que realmente aconteceu, outro que poderia ter sido e a mais pura imaginação.

Com Essa Gente, Chico atinge um momento de excelência ao dar pistas ao leitor de que a história que é lida é, na verdade, o livro que Duarte tenta escrever para, quem sabe, resolver seus problemas. Não se deve esperar, contudo, por uma solução fechada – como último toque de sofisticação estilística, Chico surpreende o mesmo leitor com um final sem solução aparente. E, ao revelar que o computador de Duarte não contém nenhum arquivo guardado, o autor, diante do leitor boquiaberto, conclui que o resto é silêncio.

ESSA GENTE

Autor: Chico Buarque

Editora: Companhia das Letras (200 págs.,

R$ 49,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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