O atacante Richarlison, do Everton e da seleção brasileira, fez um depoimento para o site The Players Tribune, no qual contou diversas histórias de sua vida, como as dificuldades que passou na infância e adolescência, no início da carreira e até quando foi jogar no futebol inglês. Entre elas, como teve uma arma apontada para ele, quando presenciou uma humilhação sofrida pelo pai, quando começou a trabalhar cedo e até como perdeu cinco quilos por comer apenas hambúrgueres e tomar Coca-Cola ao ir para o Watford. Por fim, ainda citou a alegria de jogar pela seleção.

“Tinha muito crime e muita droga no meu bairro, e alguns dos meus amigos estavam envolvidos. Em Nova Venécia, a minha mãe tinha de sair de casa para trabalhar, então eu e meu irmão íamos para a rua, onde encontrávamos a realidade: armas, malote de dinheiro… víamos de tudo. Graças a Deus, nunca nada daquilo me interessou. Mas uma vez aquele mundo veio atrás de mim. Aconteceu quando eu tinha 14 anos. Estava voltando para casa com um amigo após o futebol. Era umas oito da noite, então estava escuro. Do nada vieram dois malucos apontando armas para nós. Foi um momento muito, muito tenso mesmo. Vai que um dos caras aperta o gatilho sem querer… eu não estaria aqui escrevendo esta carta”, relatou.

“Eles falaram que não nos queriam vendendo coisas no ponto deles, mas explicamos que éramos moradores e que só jogávamos o nosso futebol mesmo e estávamos no caminho de casa. Até mostramos a bola para provar. Talvez eles tenham nos confundido com alguém. Ainda bem que depois de todo aquele medo eles nos liberaram”, contou, sobre como acabou se livrando da situação.

Em outro ponto do texto, o atacante conta sobre como teve que ajudar em casa. “Percebi que o futebol poderia ser não só a minha carreira. Seria uma maneira de eu conseguir ajudar a minha família. Morávamos cinco pessoas em uma casa de dois cômodos, e a minha mãe trabalhava o dia inteiro para colocar comida na mesa. Ela foi muito guerreira, mas não dava conta de fazer tudo sozinha. Então, logo precisou da nossa ajuda. Por isso, aos 11 anos eu comecei a vender picolé. O meu bisavô era bastante conhecido na cidade por vender picolé. Ele passou anos na pracinha com o carrinho de sorvete. Então, nas férias da escola fui trabalhar com ele. Acordava às 6h, pegava o carrinho no centro e passava o dia gritando pelas ruas.”

“Eu vendia muitos, mas ganhava pouco. Por isso, tive de trabalhar em outros lugares para ajudar a minha mãe. Vendi bombons caseiros feitos pela minha tia. Teve também o lava rápido. Olha, pensei que seria um trabalho fácil de se fazer. Por que seria difícil, né? Pois é, acabou sendo cruel. Passava o dia inteiro ensaboando pneus cheios de lama e para-brisas sujos. No fim do dia o meu corpo doía inteiro. As minhas costas estavam me matando! O meu chefe queria assinar a minha carteira de trabalho, mas eu falei: ‘Isso não dá para mim!’. Nunca mais voltei lá”, escreveu Richarlison.

“Também ajudei o meu avô na roça. Ficávamos o dia inteiro colhendo café debaixo do sol. Parecia 50 graus de tão quente! Eu costumava trabalhar e suar tanto que quase chorava. Mas quando eu olhava para o meu avô, ele estava numa felicidade gigante. Eu pensava ‘Caraca, não é possível!’. Mas eu admirava muito a dedicação dele. Muito inspirador. Outro guerreiro da família”, elogia.

HUMILHAÇÃO DO PAI – Outro momento marcante foi em um período em que pai estava com depressão. “Quando eu tinha 17 anos, fui visitar o meu pai no fim de semana com os meus dois irmãos e primos. O meu pai, Antônio, estava passando por um momento difícil. Ele estava separado da minha mãe, Vera Lucia, há 10 anos, e vivia sozinho na fazenda. Mas o pior é que estava sofrendo de depressão. (…) Enquanto estávamos lá, meus primos e eu pegamos nossas varas de pescar e fomos às três represas próximas da casa. Acho que elas estavam no mesmo terreno, porque o dono tinha dito que só podíamos pescar em duas delas. Na terceira era proibido”, começou.

“Passamos o dia inteiro tentando pescar algo nas duas represas, mas, claro, não pegamos nada. Não estávamos nem aí. Só queríamos curtir o dia juntos. Mas no caminho de volta para casa, passamos pela represa proibida. Olhamos um para o outro. Olhamos para a represa. Ninguém parecia estar por perto. Ainda tínhamos isca no anzol… Joguei o anzol na água, não sei o que me deu. Dois segundos depois… Um peixe mordeu a isca! Até hoje não sei explicar por que eu fiz aquilo. Em todo caso, o dono do terreno me viu fazendo o que não podia. Ele ficou bravo, gritou e humilhou o meu pai na frente de todo mundo, dizendo que poderia expulsá-lo da casa a hora que ele quisesse”, relembrou.

“Era a última coisa que o meu pai precisava. Ele se sentiu completamente humilhado. Naquele momento, algo passou pela minha cabeça. Lembro de falar para o meu tio Elton: “Vou fazer de tudo para conseguir um contrato no América-MG. Preciso tirar o meu pai dessa situação”. Antes daquilo, ajudar a minha família por meio do futebol era uma ideia. Depois, virou obsessão”, contou Richarlison.

IDA PARA A INGLATERRA – O jogador começou sua carreira jogando no Real Noroeste, time do Espírito Santo, estado onde morava, depois de não passar em peneiras de Avaí e Figueirense aos 15 para 16 anos. Chamou a atenção do América-MG, e, na equipe mineira, do Fluminense. De lá, foi para o Watford.

“Em 2017, quando eu tinha 20 anos, o Watford me contratou. Muitos duvidaram que eu chegaria jogando na Premier League, já que alguns brasileiros sofrem para se adaptar no início dessa mudança. Mas nunca senti a pressão. Eu era só felicidade. Na verdade, os problemas estavam fora de campo. O idioma era um deles: eu não sabia nada de inglês. O clima começou a pesar. Como cheguei à Inglaterra no verão, me senti como se estivesse no Brasil, mas a partir de novembro parei de sentir os meus pés em campo. Até o Natal a situação piorou e foi a vez das mãos. Foi bem complicado, ainda mais para alguém que nunca tinha visto neve na vida até então”, afirmou, sobre a mudança para Londres.

“Aí veio a comida. Nas primeiras duas semanas eu fiquei em um hotel com o meu empresário e a esposa dele. Logo na primeira manhã, quando descemos para o café da manhã… o que eu posso dizer? Batata frita? Sério? Olha, não sou fresco para comer, mas tudo tem limite. (…) Não me restou outra alternativa a não ser pular o café da manhã. Como não tinha muito o que comer, decidi pelo mais simples: hambúrguer e Coca-Cola no almoço e no jantar. Nas duas semanas em que fiz isso, perdi cinco quilos”, relatou.

Até por conta de tudo isso, Richarlison diz se emocionar sempre que joga pela seleção brasileira. “Cheguei na seleção andando nas nuvens, sem acreditar que eu estava prestes a vestir a tão sonhada Amarelinha. Toda vez me apresento na maior felicidade, pego a camisa no quarto e agradeço a Deus por mais uma chance de viver esse sonho”, disse. No texto, ainda teve espaço para defender a preservação ambiental após os incêndios no Pantanal.