O ator Rodrigo Abreu já adianta que não tem nenhum problema de relacionamento com seu pai. De qualquer forma, a experiência ou a falta dela não costuma ser determinante para um intérprete. “Franz Kafka era o primeiro filho homem de uma família judia. Isso já nos provoca a imaginar o peso que estava sobre ele.” A montagem em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, encara o relato do escritor tcheco provocado pela pergunta de seu pai: “Por que você tem medo de mim?”

Durante dez dias de um mês de outubro, Kafka gastou tempo e papel para registrar suas recordações e sensações que justificassem seu temor. “Ele retoma episódios desde a infância até a vida adulta. Já estava muito claro que Kafka não seguiria os passos do pai como o homem da casa”, acrescenta Abreu. Em um primeiro momento, pode-se pressentir o que se insinua como complexo, às vistas da psicologia, no qual o filho é uma imagem descomposta de seu progenitor, incluindo uma sexualidade alquebrada, como verificado no texto. “Kafka enumera todos os relacionamentos que tivera com diversas mulheres e como seu pai arruinava aquilo.”

O desafio tomado por Abreu foi, então, como narrar esse terror sutil que limava o futuro do rapaz. O ator conta que mergulhou nas diversas obras do escritor, além do livro em questão – que leu pela primeira vez, aos 17 anos – para apreender a atmosfera que ambientava as objeções de Kafka. “O livro é, inclusive, essencial para compreender e observar a produção dele.”

Para Abreu, uma outra camada que surge em sua leitura é a inadequação do escritor diante do mundo profissional. O pai de Kafka não compreendia a função e a importância de um escritor, diante de tantas coisas mais urgentes, explica. “Até hoje existe uma marginalização do artista dentro do ambiente familiar. Seja por questões financeiras, as pessoas precisam de dinheiro, ou por conservadorismo, muitos pais e mães não permitem que seus filhos se encaminhem para carreiras artísticas. E no Brasil, se não existe reconhecimento dentro da própria casa, imagine diante do governo.”

Entretanto, Abreu afirma que não é possível polarizar a relação de Kafka com o pai. “Não se trata de um relato de um filho que acusa um pai pelas suas falhas. Em nenhum momento Kafka culpa o pai, mas ele quer se tornar resultado daquela relação”, defende. O ator também considera que, apesar de a carta nunca ter sido entregue ao destinatário, o escritor pode ter acenado com um desejo de perdão. “Ele precisava se redimir”. Isso pode ser visto nas réplicas do pai, imaginadas e concebidas por Kafka. “Quando ele terminou de redigir, esses trechos estavam escritos à lápis. Ou seja, poderiam ser apagado”, considera.

Tais reflexões demandavam no palco um ambiente bastante intimista, dado o tom declaratório da carta. Abreu recorda que no início dos ensaios o diretor Antonio Gilberto sugeriu alguns pontos de apoio como recursos audiovisuais e uma cadeira como cenário. “Testamos algumas ações, mas o Antonio queria que eu mergulhasse sem rede de apoio, um ator se garantindo no palco.” O saldo visual e sonoro que se manteve foi alguns vídeos curtos, em preto e branco. “É como olhar para o passado, que não existe mas se movimenta.”

O clima confessional não impediu que o espetáculo fosse apresentado em grandes teatros. Abreu explica que, em grandes estruturas, a tendência seria a perda do tom dramático da montagem. Para tanto, a equipe visitava o teatro e pensava em soluções. Em um teatro, com mais de 400 lugares, o palco deixou de ser o centro do espetáculo. “Preferi ficar no espaço logo em frente da plateia, no mesmo nível em que o público estava. Além do mais, é sempre melhor reduzir o número de lugares para se adequar com a experiência proposta.” Por outro, as adequações não são feitas para facilitar o trabalho do ator. “É olho no olho o tempo todo. O texto pede isso. Numa relação de intimidade é isso que precisa crescer, independente da estrutura do teatro. São momentos muito delicados para compartilhar com a plateia.”