Tentar explicar por que “Minha Luta”, do norueguês Karl Ove Knausgard, é uma das obras literárias mais importantes do nosso tempo é praticamente uma saga nórdica. Em primeiro lugar, porque sua grandiosidade literal assusta logo de cara: são seis livros, em um total de quase quatro mil páginas. Depois, porque sua complexidade é reduzida a um enredo prosaico quando a descrevemos: “uma história sobre um homem comum, que reflete sobre sua vida comum em uma pequena cidade” seria um possível resumo.

O problema dessa definição é que não existem vidas comuns: em cada uma delas cabem os anseios e alegrias, medos e esperanças, amores e desilusões de todos nós. Seria impossível escrever um livro mais pessoal do que esse e, ao mesmo tempo, de forma paradoxal, impensável criar uma obra tão coletiva. Se Leon Tolstói afirmava que “para ser universal era preciso cantar a sua aldeia”, o norueguês vai mais longe e defende que, para compreender o ser humano, é preciso revelar o ser humano – por mais normal que ele seja. O que significa, na literatura, o “eu” diante do “tu” ou, de sua junção, o “nós”? Knausgard é ambicioso o suficiente para encarar essa questão existencial sem medo e conduzi-la de forma magistral.

Cada livro da série aborda um aspecto de sua vida, mas seria injusto resumi-los dessa forma dessa forma esquemática. Na verdade, todos eles são sobre tudo. Assim como Marcel Proust fez em “Em Busca do Tempo Perdido”, Knausgard deixa o pensamento flanar pelos corredores da memória, registrando no papel todo o caos que o fluxo de sua consciência permite. O resultado é a espetacular dissecação de um ser humano, sem freios ou censura. Aprendemos a digerir seu estilo ao longo da série, mas no primeiro livro, “A Morte do Pai”, é chocante ler a confissão de sentimentos tão pessoais — e negativos — sobre o próprio pai. A arte que nasce da verdade não deveria nos envergonhar, mas não estamos acostumados a isso.

Como Proust, Knausgard deixa o fluxo do pensamento ditar o ritmo da história a partir das memórias

Muita gente questiona se Knausgard batizou intencionalmente a série de “Minha Luta”, mesmo título de um dos livros mais malditos da história — a autobiografia de Hitler. Sim: ele propõe uma comparação interessante sobre como as vidas de dois homens, educados, europeus, nascidos no século 20, podem ser tão diametralmente opostas.

A universalidade os une, patética em seus pequenos problemas e profunda em suas questões mais existenciais. Se a luta de Hitler era gigante, a de Knausgard é minúscula. Todas as questões podem ser reduzidas a um denominador comum, o humano, caminho comum da infância à maturidade, seja em uma pequena cidade européia ou em uma metrópole brasileira.

O livro, portanto, pode ser descrito como um romance de auto-ficção, uma vez que as lembranças mais longínquas estão descritas em detalhes e os personagens são pessoas reais, com nomes verdadeiros. A verdade é definida pela memória, não por uma objetividade impossível de ser alcançada. O autor teve problemas com o tio, que não aceitou as descrições sobre o pai e o ameaçou com um processo. Por isso o livro é também sobre o próprio livro: em “O Fim”, escrito pouco antes do lançamento do primeiro livro, há uma metadiscussão sobre a obra. Ele envia o manuscrito para as pessoas citadas, conta sobre as reações. Alguns gostam, outros, não. Ao compartilhar os sucessos e inseguranças, ele se torna gente como a gente. Em um mundo de iguais, qual passa a ser, então, a diferença entre o autor e os leitores? A pergunta é boa porque mostra que nós, humanos, não temos respostas para tudo.

A saga nórdica de Karl Ove Knausgard