De sírios exilados à Amazônia ameaçada por Bolsonaro: o público do Festival de Avignon reservou nesta semana uma ovação de pé para o espetáculo da brasileira Christiane Jatahy que denuncia a “campanha de criminalização” de artistas em seu país.

Em “O Agora que demora”, a artista de 51 anos, que também é cineasta, recorre ao mito de Ulisses para evocar o sentimento de exílio dos refugiados, mas também em seu próprio país.

“É um momento muito difícil para fazer teatro e cinema. Eles cortaram subsídios. É uma maneira de nos amordaçar”, diz à AFP esta mulher com voz suave que, durante uma de suas intervenções na sala, apareceu à beira das lágrimas.

“Existe uma campanha para criminalizar artistas como pessoas de esquerda. É um discurso tão antigo”, acrescenta ela.

– “Ainda sob o choque” –

Desde a eleição de Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, a cultura brasileira como um todo está em crise. Assim que chegou ao poder, o presidente de extrema direita prometeu expurgar o “marxismo cultural” do Brasil e reduziu o Ministério da Cultura a um mero departamento do novo Ministério da Cidadania.

Segundo Christiane Jatahy, a resposta do mundo do teatro balança entre “a anestesia, porque ainda estamos em choque, e a produção de muitas peças que falam da situação”.

“É impossível não pensar no teatro como político hoje”, disse a diretora, que é carioca.

“O Agora que demora” não é uma peça no sentido clássico do termo, mas sim uma mistura de documentário e ficção.

Filmados no Líbano, nos Territórios palestinos, na África do Sul e, finalmente, na Amazônia, os protagonistas são verdadeiros refugiados, mas também atores na vida real, encontrados em Beirute, no campo de refugiados de Jenin, ou no Hillbrow Theatre, em Joanesburgo.

Durante todo espetáculo, que sairá em turnê pela Europa em setembro, vemos os personagens lendo, em sua própria língua, trechos da Odisseia de Homero, depois sobre sua própria odisseia do exílio: de Yara, a síria presa em Damasco, a dois indígenas Kayapós, na Amazônia, passando por refugiados do Malauí e do Zimbábue, na África do Sul.

De repente, parte desses mesmos personagens, como saídos da tela, encontram-se no meio dos espectadores, recontando sua história e convidando-os a dançar com eles.

“Ulisses é cada um de nós, e o Cíclope (a quem Ulisses fura o olho) pode ser os ditadores, tanques de guerra”, diz Jatahy.

Ela começou a filmar antes de Bolsonaro chegar ao poder e sua intenção inicial era acompanhar os refugiados venezuelanos no Brasil.

– “Somos iguais” –

“Mas a realidade (da eleição) me alcançou. O Brasil é minha Ítaca (a ilha de Ulisses), mas o exílio não é apenas estrangeiro, mas no próprio país” , disse ela, citando “os índios da Amazônia, pulmão do mundo, ameaçados de genocídio”.

“Muitos índios estão morrendo de pneumonia por causa da proximidade das cidades. Nós transmitimos nossas doenças para eles. Não é pessimismo, é a realidade”, continua a artista.

A última parte do documentário teatral também é a mais comovente, mostrando Christiane conversando com dois índios Kayapós no estado do Pará.

“Antes, não havia homem branco. Você não conseguia ver um avião por causa de tanta floresta”, diz um deles. “Somos também brasileiros, somos iguais”, completou ela.

Nesse mesmo estado brasileiro, índios Arara citados em uma reportagem da AFP em abril se queixam de que as terras reservadas a eles são regularmente saqueadas por traficantes de madeira e por uma multiplicação das incursões desde a chegada de Bolsonaro ao poder.

“Temos de tentar mudar, mesmo apenas 1%. Mas é verdade que, no momento, eu sinto muito medo pelo futuro”, disse Jatahy.

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