“Tem gente que acha que as vítimas da doença atrapalham. São pessoas que se preocupam mais com a política do que com a vida humana” Márcio Antônio do Nascimento Silva, motorista de táxi (Crédito:AMAURI NEHN)

Gente de todas as classes, idades, credos e etnias ainda age irresponsavelmente, tratando a Covid-19 como “gripezinha” ou “mimimi” e contribui para a intensificação da pandemia, tornando o Brasil, hoje, seu epicentro mundial. Alcançou-se, nestes dias, a marca de um milhão de contaminados e de mais de 47 mil mortos. E os números não param de crescer. Mesmo assim, muitos, inclusive políticos e autoridades, se recusam em aceitar o risco da doença e em colaborar para que ela não se propague. Ao contrário, contribuem para ações irresponsáveis e para aumentar a tensão social. É o caso dos invasores de hospitais, que, desde a quarta-feira 10, quando o presidente Jair Bolsonaro incentivou seus seguidores a entrar em centros de saúde e filmar a oferta de leitos, se multiplicam pelo País. Para o presidente, os números oficiais de ocupação hospitalar estão inflados e, até agora, “ninguém perdeu a vida por falta de respiradores ou de leitos de UTI”. Os conspiradores da pandemia acreditam que ela não passa de uma artimanha esquerdista para derrubar o governo.

Uma onda de crueldade e de falta de empatia e respeito ao próximo começa a se espalhar pela sociedade, intensifica os efeitos da pandemia e faz pensar que a propalada cordialidade brasileira é uma falácia. Desde a semana passada aconteceram pelo menos cinco invasões de hospitais pelo Brasil. Trata-se de uma ação selvagem e desrespeitosa que em nada ajuda no enfrentamento da difícil situação atual, além de ser uma ofensa para familiares de doentes e mortos. No Rio de Janeiro, um grupo de seis pessoas, sem seguir protocolos sanitários, entrou no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, em Acari centro de referência no tratamento da Covid-19 na zona norte do Rio e provocou uma baderna em alas restritas a médicos e pacientes. Uma mulher chutou portas, derrubou computadores e tentou invadir quartos de pacientes internados no quinto andar do prédio. Os invasores também gritavam “mentira! mentira!” e diziam que tinham direito de inspecionar os leitos para verificar se estavam mesmo ocupados. O ato dos manifestantes pode ser enquadrado no artigo 268 do Código Penal que estabelece uma pena de detenção de um mês a um ano para quem propaga doenças contagiosas.

AGLOMERAÇÕES Consumidores tomam a Rua 25 de Março, pólode comércio paulistano, para fazer compras: irresponsabilidade e falta de empatia (Crédito:RodrigoZaim)

Promotores do caos

No Espírito Santo, um dia depois, um grupo de seis deputados estaduais fez o que chamaram de “visita surpresa” ao Hospital Dório Silva, em Serra, para checar se os dados oficiais da Secretaria de Estado da Saúde sobre ocupação de leitos eram verdadeiros. O grupo de deputados era composto pelo Capitão Assunção (Patriota), Carlos Von (Avante), Danilo Bahiense (PSL), Lorenzo Pazolini (Republicanos), Torino Marques (PSL) e Vandinho Leite (PSDB). “Foi um trabalho normal de fiscalização para verificar a ocupação do hospital”, minimizou o deputado Capitão Assunção sobre o ato. “O Ministério Público Federal (MPF) disse que o número de leitos não conferia com o que o governo estadual relatava e fomos verificar para mostrar ao povo capixaba a real situação daquela unidade”. A Procuradoria-Geral do Espírito Santo, porém, considerou a iniciativa contra a lei e apresentou ao MPF uma notícia-crime contra os seis deputados.

Aconteceram também invasões promovidas por parlamentares e pessoas não identificadas no Distrito Federal, em São Paulo e na Bahia. Na quarta-feira 17, o deputado estadual Capitão Alden (PSL-BA) entrou no hospital de campanha Riverside, em Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, para filmar a oferta de leitos e ameaçou prender funcionários. Alden, que é policial militar e apóia Bolsonaro, chegou acompanhado de seguranças e aparentava estar armado. Em São Paulo, num claro abuso de autoridade, cinco deputados, com gritos e empurrões, entraram no Hospital de Campanha do Anhembi, que recebe pacientes de baixa e média complexidade infectados pelo coronavírus, para verificar a subutilização do espaço. Um dos invasores, o deputado Coronel Telhada (PP), questionou o fato de haver leitos ociosos no hospital de campanha, como se isso fosse uma artimanha do governo estadual. Alas inativas do hospital foram filmadas sem autorização, assim como pacientes.

As invasões de hospitais fazem parte de uma campanha negacionista fomentada pelo governo que leva as pessoas a recusarem evidências sobre o coronavírus e tratarem os doentes como culpados. Alguns também de minimizam o luto, questionam o número de mortos e atacam o uso de máscaras. Tomados por uma espécie de fúria anti-pandêmica, esse exército de insensatos desrespeita normas e profissionais de saúde. O caso mais chocante foi o do ataque à manifestação do movimento Rio de Paz, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Dezenas de covas rasas foram cavadas na praia e receberam cruzes para simbolizar as vítimas fatais do coronavírus. Era uma manifestação pacífica e suprapartidária em que se reivindicava mais racionalidade e humanidade do governo para enfrentar a crise de saúde. Foi então que o engenheiro aposentado Héquel da Cunha Osório, que estava com um grupo de pessoas que criticavam a manifestação, foi até a praia e passou a arrancar as cruzes das covas.

Campanha negacionista

“Nós sempre fomos objeto de críticas, mas o nível de ódio que se vê atualmente é algo que não havíamos experimentado”, afirma o presidente do Rio de Paz, Antonio Carlos Costa. “Algumas pessoas nos tratavam de maneira descortês, nos chamavam de comunistas, diziam para irmos para a Venezuela e que as torneiras das ONGs tinham secado. Nós nunca recebemos um tostão de dinheiro público”. A manifestação em Copacabana não tinha uma pauta identitária, por exemplo, mas expunha uma luta pelo direito de todos os brasileiros. O grupo de opositores, no entanto, fazia barulho e tentava avacalhar o protesto. Foi quando Héquel Osório se tornou agressivo. Os membros da ONG não reagiram, mas o motorista de táxi Marcio Antonio do Nascimento Silva, 55 anos, que mora em Copacabana e passeava no calçadão, foi até a praia e colocou de volta as cruzes que eram arrancadas.

Marcio tinha motivos para isso. Ele perdeu o filho Hugo, de 25 anos, para o coronavírus e não podia aceitar uma atitude tão desalmada. Hugo era técnico de informática e professor de dança. Levava uma vida saudável e não tinha doenças pré-existentes. A doença o levou em uma semana. Marcio ainda sofre com a perda do filho e quando viu as covas na praia sendo desfeitas não se conteve. “Era como se estivessem profanando a cova do meu filho”, afirmou. “Ele tirava as cruzes e eu as colocava de volta. Me chamavam de comunista, mas sou apenas um pai indignado pedindo respeito”. Márcio, que também pegou a Covid-19, não entende como a situação chegou a um nível tão degradante. “As pessoas que agem assim se preocupam mais com a política do que com a vida humana”, disse. Uma parte da população, motivada por Bolsonaro e seus aliados, adotou comportamentos e crenças relacionados ao darwinismo social, a teoria que prega a vitória dos mais fortes na luta pela sobrevivência. Para os defensores dessa tese, os mais aptos e capazes de sustentar a si mesmos sobreviverão à pandemia e os mais fracos sucumbirão. Diante disso, passa a valer o cada um por si. Na prática, o darwinismo social renega a solidariedade e a empatia, estimula a truculência e faz com que algumas pessoas se sintam indestrutíveis e superiores. É esse espírito que orienta, por exemplo, a corrida às compras que se seguiu à flexibilização da quarentena. O comércio de São Paulo reabriu sem manter controle de fluxo e distanciamento entre clientes. A Rua 25 de Março ficou totalmente lotada, assim como as lojas do Brás. Nos shoppings houve lotação e filas.

“Negar é mais fácil do que aceitar que a pandemia existe e está matando. Negar é uma forma de fuga e uma dificuldade de lidar com a frustração. Temos autoridades validando comportamentos irracionais e muitas pessoas tendem a segui-las”, diz a psicóloga social da Clínica Maia, Sheilla Queiróz. Segundo ela, o risco é a pessoa se sentir inatingível e superior, a ponto de pensar que a doença não vai chegar nela. É uma espécie de patologia social que se desenvolve atualmente no País e que precisa ser combatida. Não se admite que a doença seja menosprezada e a morte se torne algo banal. Mas, ao que parece, é isso que está acontecendo no Brasil.