03/11/2024 - 7:00
Donald Trump e Kamala Harris disputam atualmente pela presidência dos Estados Unidos, em uma das eleições mais turbulentas dos últimos anos. A votação está marcada para a próxima terça-feira, 5, e as campanhas de ambos os candidatos estabelecem as últimas estratégias da corrida.
O presente conflito na Faixa de Gaza – que já se espalha por inúmeros países do Oriente Médio – é um tema recorrente nas discussões sobre política americana. Isso porque os EUA são conhecidos pela interferência frequente em assuntos internacionais e, na guerra atual, apoia Israel.
Diversos cidadãos, especialmente de origem árabe, postulam críticas sobre a postura do governo americano, seja ele Democrata ou Republicano, em relação ao conflito.
Durante um comício em Michigan na semana passada, Donald Trump convidou líderes árabes para o palco e afirmou que “acabaria com a guerra em Gaza”. A abordagem vai na contramão de suas ações enquanto presidiu o país, incluindo a medida de 2017, conhecida como “Muslim Ban”, que restringiu a entrada de cidadãos de países muçulmanos.
Para analisar essa mudança, o site IstoÉ conversou com Uriã Fancelli, mestre em Relações Internacionais pelas Universidades de Groningen e Estrasburgo. Confira a entrevista:
IstoÉ: Recentemente Donald Trump fez um comício em Michigan, um estado com grande presença árabe. Na ocasião, ele chamou lideranças muçulmanas para o palco e prometeu acabar com a guerra em Gaza, criticando o atual governo americano. Esse movimento pode ser visto como uma estratégia de campanha para atrair eleitores árabes insatisfeitos com o conflito no Oriente Médio?
Uriã: Sim, a aproximação de Donald Trump com eleitores árabes é uma jogada clara para explorar o descontentamento desses grupos com a política externa dos democratas, principalmente pelo apoio inflexível de Biden a Israel. Trump não perde tempo: ele se agarra a esse sentimento de insatisfação com gestos simbólicos, mirados para atrair essa base em estados-pêndulo como Michigan, onde ele e Kamala Harris estão em um embate acirrado.
Mesmo com seu histórico saturado de retórica e políticas anti-muçulmanas, Trump tem encontrado uma certa receptividade entre eleitores árabes e muçulmanos. Uma pesquisa da Arab News Research and Studies Unit revelou que ele agora lidera por uma pequena margem sobre Harris entre os árabes americanos (43% contra 41%). Esse apoio, por menor e mais improvável que pareça, reflete a crescente decepção com os democratas, que muitos árabes e muçulmanos sentem terem sido deixados de lado.
Enquanto os democratas se mantêm calados diante das demandas árabe-muçulmanas, Trump preenche o vazio: seja elogiando árabes em veículos sauditas ou se exibindo ao lado de líderes muçulmanos. Ele entende a frustração e a usa em benefício próprio. O resultado? Um cenário onde eleitores, antes fiéis aos democratas, agora cogitam Trump – um aliado incômodo, mas que ao menos não os ignora.
IstoÉ: Trump é conhecido por suas opiniões preconceituosas e, muitas vezes, xenofóbicas. Ele já deu declarações polêmicas sobre a comunidade árabe, com destaque para o “Muslim Ban”, que proibiu cidadãos de países islâmicos de entrar e conseguir visto nos EUA. Além disso, há o fato de Michigan ser um estado pêndulo e, por isso, não possuir preferência definida na escolha do presidente. Qual a relação de Trump com essa parte do eleitorado e a importância de dialogar com votantes fora do seu espectro?
Uriã: Trump, que se projetou politicamente com declarações e políticas anti-muçulmanas, incluindo o famoso “Muslim Ban” e a constante demonização de figuras públicas árabes e muçulmanas, agora tenta, de maneira muito oportunista, se reinventar para atrair essa mesma comunidade em Michigan. Depois de anos propagando xenofobia e alimentando a islamofobia — desde alegações infundadas de que muçulmanos comemoraram o 11 de setembro até ataques diretos a deputadas como Ilhan Omar e Rashida Tlaib —, Trump agora se apresenta como amigo dos árabes. Mas é um jogo bem calculado.
Michigan, com sua significativa população árabe-americana, é um estado pêndulo, e a diferença entre vitória e derrota ali pode ser mínima. Ele sabe que muitos desses eleitores, frustrados, enxergam os democratas como insensíveis às questões do Oriente Médio. Em um movimento conveniente, Trump agora posa com prefeitos e lideranças muçulmanas, explorando simbolismos vazios e prometendo paz, enquanto continua a lançar mão de sua retórica inflamada, referindo-se a “palestinos” como insulto e prometendo deportar manifestantes pró-Palestina.
A mensagem é clara: para ele, ganhar Michigan vale mais que qualquer contradição. Mesmo que a comunidade árabe e muçulmana veja com desconfiança essa “mudança de tom”, ele aposta na insatisfação com os democratas para atrair votos. Trump, ao menos, não esconde o jogo: ele joga com cada voto em mente, disposto a qualquer ajuste conveniente de narrativa, e sem qualquer preocupação em parecer genuíno.
IstoÉ: Qual o peso das questões de política externa na hora da escolha de voto dos estadunidenses?
Uriã: Para o eleitor americano, a política externa normalmente passa longe do radar – é a economia e a imigração que realmente ditam o humor nas urnas – pelo menos em situações de normalidade política. Mas bastam alguns temas incômodos para esse desinteresse ceder espaço a reações inflamadas. No ciclo eleitoral de 2024, o apoio dos EUA a Israel no conflito com Gaza virou uma pedra no sapato dos democratas, especialmente entre progressistas, jovens e árabes-americanos. Essa base, vital em estados como Michigan e Pensilvânia, está longe de impressionada: o descontentamento com o governo já levou uma parcela expressiva a votar “não comprometido” nas primárias – um claro recado de que, no ritmo atual, muitos podem repetir o gesto nas eleições gerais. Portanto, a política externa pode não estar no topo da lista de prioridades, mas temas sensíveis como o conflito Israel-Palestina carregam potencial para mexer com o voto de grupos específicos em estados decisivos – e os democratas que ignorem essa insatisfação o fazem por conta e risco.
*Estagiário sob supervisão