"Ele nunca nos esqueceu": palestinos de Gaza em luto por Francisco

"Ele nunca nos esqueceu": palestinos de Gaza em luto por Francisco

"ATodos os dias, desde o início da guerra em Gaza, em 2023, Francisco ligou para uma igreja no enclave devastado pelo conflito para confortar fiéis e ter notícias sobre as centenas de refugiados abrigados no local.Em meio à destruição na Faixa de Gaza, havia um vislumbre diário de esperança na paróquia da Sagrada Família no enclave palestino acossado pela guerra: um telefonema noturno do Vaticano. Do outro lado linha, era ninguém menos que o papa Francisco. Todos os dias, por volta das 20h, desde o início da guerra, há 18 meses, o papa ligou para ter notícias do seu rebanho de cristãos palestinos abrigados na sede da igreja.

"Ele nos telefonava diariamente, mesmo nos dias mais sombrios, sob bombardeio, quando pessoas estavam sendo mortas e feridas ao nosso redor", disse Gabriel Romanelli, o padre responsável pela paróquia da Sagrada Família. Assim como Francisco, Romanelli é natural de Buenos Aires.

Vídeos divulgados após a morte de Francisco mostram o papa falando por videochamada com o padre e fiéis abrigados na igreja. Em uma das ligações, efetuada no último aniversário de Francisco, em 17 de dezembro de 2024, crianças palestinas cantam parabéns para o papa.

"A comunicação era constante, dia e noite. Às vezes, devido à difícil situação em Gaza, eram necessárias três ou quatro horas de tentativas até que a ligação finalmente fosse atendida. Mas ele nunca desistiu até chegar até nós".

"Ele fez todos os esforços para falar com cada um de nós por telefone", disse, por sua vez à DW, George Anton, coordenador de emergência da paróquia. "Desde o início da guerra até o dia anterior à sua morte, ele permaneceu uma presença diária em nossas vidas. Ele nunca se esqueceu de nós."

A última vez que Francisco fez contato foi no sábado (19/04), dois dias antes da sua morte, contou Romanelli: "Ele pediu nossas orações, nos deu sua bênção e nos agradeceu por nosso compromisso com a paz".

A última chamada, quando o papa estava bastante fragilizado, durou apenas 30 segundos. Mas, na maioria dos dias, a ligação durava cerca de 15 minutos.

"Sentiremos muita a falta do papa”

Em Gaza, foi a conexão humana que tornou "baba Francis", como ele era conhecido em árabe, tão especial. Para muitos no enclave sitiado, ele era o único elo constante, ainda que virtual, com o mundo exterior. Isso deu à comunidade um enorme apoio, aponta George Anton, pois muitos em Gaza sentem que o mundo os esqueceu.

"Sentiremos muita falta do papa Francisco. Sentiremos falta de seu amor pessoal por cada um de nós", acrescentou Anton. "Sentiremos falta de sua preocupação paternal, sempre perguntando sobre nossas vidas e nos oferecendo compaixão e força, aliviando nossos medos. Sua presença, mesmo de longe, nos trazia conforto."

Suhail Abu Daoud, um residente de Gaza de 19 anos, diz que sentiu que o papa se importava genuinamente com as pessoas e com a situação em Gaza.

"Ele foi um dos maiores defensores dos pobres e marginalizados", disse Abu Daoud à DW. "Ele se opôs consistentemente à guerra e pediu paz e um cessar-fogo em Gaza e em todo o mundo."

Críticas à guerra

Em Gaza, permanecem apenas 1.200 palestinos cristãos. Desde o início da guerra, muitos procuraram abrigo nas duas igrejas cristãs do enclave. Atualmente, cerca de 500 pessoas deslocadas estão abrigadas no complexo da igreja da Sagrada Família. A comunidade também cuida de pessoas com necessidades especiais.

No final de outubro de 2023, após os ataques terroristas executados pelo Hamas, que mataram cerca de 1.200 pessoas, um dos ataques aéreos israelenses de retaliação chegou a atingir o complexo da igreja greco-ortodoxa São Porfírio, que também fica na Cidade de Gaza. Dezoito pessoas que haviam buscado abrigo no local morreram.

Durante a guerra, a situação humanitária em Gaza motivou diversas críticas de Francisco e frequentes apelos pela paz. Ele condenou com frequência o que via como uso desproporcional de força contra civis por parte de Israel.

Francisco chegou a indicar que o estava acontecendo em Gaza poderia constituir um genocídio de acordo com a lei internacional.

"De acordo com alguns especialistas", escreveu Francisco em novembro de 2024, "o que está acontecendo em Gaza tem as características de um genocídio". "Deve ser cuidadosamente investigado para determinar se se enquadra na definição técnica formulada por juristas e órgãos internacionais."

As últimas palavras do Papa foram "uma mensagem de paz"

Francisco viajou várias vezes para o Oriente Médio várias vezes durante seu papado. Em várias ocasiões, abordou a situação muitas vezes difícil das minorias cristãs na região e tentou construi pontes inter-religiosas. Sob sua liderança, o Vaticano reconheceu formalmente um Estado da Palestina. E, desde o início da guerra em Gaza em 2023, ele foi um crítico público do conflito.

Francisco também pediu ao Hamas para que libertasse todos os 251 reféns que foram sequestrados em 7 de outubro de 2023 em Israel e se encontrou com algumas das famílias dos cativos em Roma. Suas críticas à guerra nem sempre foram bem recebidas em Israel.

Após a morte de Francisco, enquanto mensagens de pesar chegavam de todo o mundo, apenas o presidente de Israel, Isaac Herzog, enviou condolências por parte do seu país. O Ministério das Relações Exteriores de Israel chegou a excluir uma nota de condolências nas redes sociais sobre o falecimento do papa. Já o premiê Benjamin Netanyahu evitou completamente mencionar a morte de Francisco.

Em contraste com o funeral de João Paulo 2° em 2004, Israel também se limitou a ser representada no funeral de Francisco pelo seu embaixador junto ao Vaticano. Em 2005, o país enviado seu presidente e um ministro. Ainda em contraste com os israelenses, a Autoridade Palestina (AP) enviou o primeiro-ministro Mohammad Mustafa.

No domingo de Páscoa, em seu último discurso, lido por um de seus assessores, Francisco exortou Israel e o Hamas a realizar um cessar-fogo. Ele também pediu a libertação dos reféns e auxílio a "um povo faminto que aspira a um futuro de paz".

Em Gaza, essa mensagem, um dia antes da morte de Francisco, ressoou.

"Ele estava transmitindo uma mensagem de paz e pedindo um cessar-fogo completo em Gaza", disse Suhail Abu Daoud. "Suas últimas palavras foram sobre Gaza, um lugar que ocupava um lugar único e especial em seu coração."