O Rio de Janeiro está em estado de guerra. Sob intervenção federal e com sua segurança controlada pelas Forças Armadas, suas comunidades mais pobres estão sofrendo com abusos de poder e com uma nova rotina de violência, que vai além do combate ao crime. O pior lado da intervenção veio à tona nos últimos dias com a divulgação do relatório parcial Circuito de Favelas por Direitos, elaborado pela Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O documento ao qual ISTOÉ teve acesso mostra uma série de abusos de autoridade contra os moradores de favelas cariocas, além da flagrante agressão aos direitos humanos por parte da autoridade de intervenção federal. Os pesquisadores visitaram 15 comunidades e detectaram 30 tipos diferentes de violência contra a população. Os próprios moradores contam suas histórias, em anonimato, que envolvem abordagens vexaminosas, violação em domicilio, agressões de todos os tipos, destruição e roubo de objetos dos moradores e nos pequenos comércios da região, casos de estupros, tortura e mortes provocadas pela ação das forças de segurança pública. Houve também um aumento da letalidade policial, com um número crescente de mortes em tiroteios.

“Esses abusos já acontecem há muito tempo e, com a intervenção, o Exército aprendeu a lógica da atividade policial nas favelas e as agressões foram potencializadas”, afirma Pedro Strozemberg, ouvidor geral da Defensoria do Estado do Rio. “O resultado do relatório não surpreende pela violência em si, mas pelo fato das pequenas violações se tornarem comuns”. Strozemberg conta que durante a realização do estudo houve contato com um jovem casal, com dois filhos menores, que mora em uma das comunidades atingidas pela intervenção. Relataram que, diariamente, ao escutarem tiros, se escondem no minúsculo banheiro da casa, todos agachados. Numa madrugada, o filho do casal de quatro anos, escutou, antes dos pais, um estampido e sozinho se dirigiu ao banheiro, ali permanecendo até a família se abraçar. “Quando uma criança toma essa atitude, sozinha, a violência já está institucionalizada, tornou-se algo normal”, diz Strozemberg.

“O Exército aprendeu a lógica da atividade policial nas favelas e as agressões foram potencializadas” Pedro Strozemberg, ouvidor da Defensoria do Rio

A intervenção federal assinada pelo presidente Michel Temer teve início em 16 de fevereiro e seu término está previsto para dezembro. O Gabinete de Intervenção Federal informa que todas as operações e ações realizadas visando combater a criminalidade são feitas dentro da legalidade objetivando proteger cidadãos e respeitar seus direitos. Mas a prática tem sido diferente. “A experiência demonstra que o uso das Forças Armadas é uma escolha ineficaz e que reforça a lógica do enfrentamento bélico”, afirma Raquel Willadino Braga, diretora do Eixo de Segurança Pública do Observatório de Favelas, vinculado à Defensoria. “Precisamos de uma política de segurança que tenha como foco a proteção da vida.” Dentre os relatos anônimos, presentes no relatório, há vários que indicam um tratamento violento por parte dos agentes de segurança. “Aqui tratam todo mundo como bandido”, diz um depoimento.

Agressões e estupros

A tesoureira da associação de moradores da comunidade Ladeira dos Tabajaras e Cabritos, na zona sul, Vânia Ribeiro diz que os policiais da Unidade de Policia Pacificadora (UPP) “estão barbarizando a comunidade”. “Eles entram nas casas e agridem os moradores para obter informações”, conta. Está em vigor uma operação surpresa, desde o mês passado, que pode, a qualquer momento, se desdobrar em invasões e agressões. Vânia conta que os moradores vivem com medo, pois “os policiais atiram a esmo e a gente fica no meio”. Um casal fez o seguinte relato: “Entraram na minha casa, ligaram o ar-condicionado, comeram os Danones dos meus filhos, levaram mil reais e ainda deixaram tudo revirado”. Estupros também foram relatados. Policiais entraram numa casa que era ocupada pelo tráfico onde havia dois garotos e três meninas. As meninas eram namoradas dos traficantes. Era para ser todo mundo preso, mas os policiais ficaram horas na casa, estupraram as meninas e espancaram os garotos. Outra moradora da comunidade dos Tabajaras, Maria Borges, 31, ficou presa em meio um tiroteio entre bandidos da localidade e seis policiais da UPP. “Sai para buscar meu filho na creche. Os policiais apontaram o fuzil, queriam saber onde estavam os bandidos. Eu disse que só queria sair do meio do tiroteio. Aí, eles me xingaram de vagabunda, piranha”, contou. Sobre denunciar o fato, disse: “Como? Se nem identificação eles usam. Não deixam os Direitos Humanos subir aqui”, diz. Como se nota no relatório sobre o cotidiano das favelas, a intervenção tem gerado violência desnecessária. Pior, contra inocentes.

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